Chegada

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Meu nome é Barall, eu sou o sacerdote desta pequena vila encravada nas encostas das montanhas do Leste, nos limites das grandes planícies. Faz um mês que recebi uma mensagem Do Um. Ele veio a mim em um sonho, com um chamado: é chegada a hora da minha prova! Eu fui convocado para agir em nome do meu Deus. Espero ter forças e que minha fé não fraqueje!

Enfim, era o que eu pensava. Mas nada me preparou para o que estava por vir.

Foi numa noite chuvosa, na mais maldita das noites, a noite da grande escuridão (sem luas), o dia em que a noite – com seu manto protetor da bênção Do Um não nos alcança, que tudo aconteceu.

Foi tão rápido que, até agora, ainda não sei bem como cheguei ao ponto em que estou...

Nós somos uma aldeia de pastores, da tribo dos Chifres; cuidamos de nossos irmãos cabras e ovelhas, que, como nós, ostentam os maravilhosos chifres que O Um nos deu, como orgulho de nossa raça!

E foi logo nessa noite infeliz que eles chegaram.

Quem primeiro deu o alarme foram nossos irmãos menores, temendo por suas vidas ante a presença de um inimigo natural. E quando menos esperava, levantando-me sonolento para ver o que se passava, na luz de um trovão, eis que a silhueta de algo peludo, molhado e cheirando a sangue se mostrou entre os batentes da minha porta, projetando sua sombra de mau agouro para dentro da minha humilde residência.

- Que O Um ilumine o seu caminho.

Uma saudação formal entre os Filhos Do Um, algo que eu, como sacerdote, não poderia ignorar, ao que respondi:

- E que todos os caminhos levem a O Um.

- Olha, sacerdote, necessitamos de seus serviços, e é urgente!

Era uma patrulha do povo da floresta, homens-lobos que patrulham as matas e trazem a palavra e a justiça Do Um para o verde. Deles é a mata fechada, nossos são os campos; e assim deveria ser, mas não nesta maldita noite. A tribo dos Caninos Longos estava aqui!

Nessa noite, eles estavam em fuga, acossados pelos humanos, atacados, destruídos, sem o orgulho de outrora. Malditos humanos, que O Um os amaldiçoe por todas as noites até o fim dos tempos!

Já fazia algum tempo que eles estavam nessa dança macabra, sendo reduzidos dia a dia. Atacando à noite, sendo caçados de dia. Uma história que todos conheciam e já sabiam como iria terminar. Porém, hoje seria diferente!

Pois hoje, era minha missão protegê-los, e ainda havia a grávida, o que tornava tudo ainda mais perigoso.

Ela havia sido tomada pelos humanos, usada, violada, espancada e, finalmente, resgatada pelos seus. Graças aO Um por sua volta à tribo!

E de todos os dias do ano, justo na noite do maldito eclipse das três luas, era o dia de trazer uma nova vida a este mundo de dor e sofrimento, e essa era minha missão!

Além de ser um fruto profano, filho de uma violação, um meio sangue, meio humano, meio fera, ainda por cima tinha a desgraça de ser maldito de berço, condenado desde o nascimento, tão só por vir ao mundo nesta tão maldita noite!

Mulheres já mataram seus filhos para que não tivessem que viver sob a maldição de terem nascido no dia sem Deus, e esse agora terá uma dupla blasfêmia sobre sua cabeça.

Que O Um tenha piedade de sua vida e o guie na sua jornada, pois tenho certeza de que será desprezado por todos e odiado por muitos.

O parto foi difícil: uma criança prematura, uma mãe combalida, uma noite de terror, algo para se esquecer, colocar no passado, como se tudo que pudesse dar errado se juntasse numa única ocasião!

Ainda bem que minha cabana fica longe do resto da tribo, assim tudo pôde ser feito de uma forma mais discreta...

Um choro fraco, como um pedido de desculpas, seguido de um suspiro de alívio.

A mãe ainda teve tempo de olhar para seu filho e dar um único presente, um nome:

- Ele se chamará Garn. Infelizmente, não tenho mais nada para lhe dar, pequenino. Minha vida se esvai, meus companheiros, vamos para a morte. Que O Um possa abençoar o seu caminho, pois esse nome é o único presente que posso lhe dar.

E como fosse seu último esforço, ela se entregou à noite num último abraço, para poder deixar esta vida com um alento de esperança de dias melhores na sua próxima encarnação.

O chefe da matilha não sabia se chorava de raiva ou de frustação pela sua morte, ainda mais após tanto esforço. Ao fim, decidiu simplesmente responsabilizar seus seguidores pela dupla tragédia!!

Olhando nos meus olhos, ele me pediu, rosnando entre seus dentes brancos:

- Sacerdote, hoje as luas começam a voltar para o alinhamento, despontando no céu noturno. Agora é a hora de reclamar nosso lugar neste mundo. Dê-nos a bênção Do Um para que possamos usar nossos poderes e reclamar o sangue derramado. Juramos aqui, perante O Um, tendo o Sr. como testemunha, que essa desonra será lavada, e esse sangue será vingado!

Sim, uma bênção dada por um devoto, magia da classe divina que somente um sacerdote pode dar.

Foi nessa noite de chuva, medo, raiva, tristeza, sangue e ranger de dentes que eu, Barall, velei seu primeiro sono, enquanto lá fora reinavam dor, desespero e morte...

Meu pequeno Garn, lembrando as palavras Do Um:

- Nas tuas mãos coloco a vida de meu enviado. Sob ti repousa a tarefa de guiá-lo neste mundo, nos seus mistérios e na crença que une todos os meus filhos. Ele é uma alma de outro mundo e não conhece nossos costumes; caberá a você educá-lo, treiná-lo e fazer dele um sacerdote. Não me falhe!!

Lobo em pele de CordeiroOnde histórias criam vida. Descubra agora