Prólogo

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Ping, ping, ping

Seria esse o último ping?

Ou seria tic, tic, tic?

Se tá maluco!

De dia (quando tem luz e barulho lá fora), parece mais ping, de noite sozinho no escuro, parece mais tic.

Tic, tic, tic, tic...

Tic, tic, tic....

Acorda!!!

É de dia: ping, ping, ping!!!

Seria esse o último som que eu vou ouvir nessa vida?

Cadê as vozes? As músicas?

Quando foi a última vez que eu ouvi uma risada?

De quem quer que seja! Pois da minha própria voz eu nem lembro mais o som.

Será que eu ainda sei como rir? Como respirar fora dessa maldita/ bendita máquina que me mantém vivo?

Ping, ping , ping...

Será esse o último ping?

Será que terei algum tempo até o próximo tic?

Dizem que quando você está mais próximo da morte, mais você pensa na sua infância, em quando você era feliz e o mundo ainda era um lugar seguro e confortável...

Só que não...

Claro que para mim isso não seria possível, filho de uma menina ingênua, enganada pelo namorado, abandonada pela família e despejada no mundo. Ela só pode contar com o seu corpo e o passageiro vigor da juventude.

Um filho bastardo, sem pai, sem família, sem lar, chutado para fora nos "horários de trabalho" daquela que me olhava com ódio e mágoa. Eu era o símbolo de tudo o que deu errado em sua vida. Uma boca a mais, um choro a mais, uma esperança a menos.

Vagar pelos meandros, ruelas, atalhos e becos da comunidade era a forma de me manter ocupado e de ir aprendendo as leis que regem a vida. Ao menos nisso eu sentia liberdade!

Saber de quem se aproximar, de quem se afastar, afiando o instinto de sobrevivência como um animal numa floresta de pedra, caos e sofrimento.

Quando dei por mim, nem me lembro que idade tinha, já estava lá: um dia ajudando quem era da milícia a achar quem não queria ser encontrado; outro dia ajudando a polícia a pegar quem já havia sido marcado para morrer e a quase, quase, pegar quem ainda era aliado.

Usar e saber ser usado. Um jogo perigoso de quem na vida quase nada tem, ou seja, ainda menos a perder. Aprendendo quais as regras do jogo de poder, do "ganha quem pode mais" e do "salva-se quem consegue".

Veio a adolescência, e junto a audácia, o sentimento de tudo poder, de tudo conseguir. O desejo de ser mais.

Aquela a quem já não chamava de mãe ainda estava lá, distante, mas não sei se estava orgulhosa ou com medo do que aquele filho estava se tornando.

Subir nas fileiras era o mesmo que garantir a sobrevivência do mais forte, do mais temido, do mais respeitado. E para isso, vale tudo: vale usar todos e descartar quem não me servisse mais.

Melhorei de vida! Com dinheiro tudo fica mais fácil!

Agora até o crápula do cara que um dia foi o homem que engravidou minha mãe, começou a querer me chamar de filho...

Parecia que tudo ia bem, porém, vida de pobre é assim: desgraça não bate na porta para pedir para entrar...

Subir na vida era subir o alvo no peito. Cada vez mais, o jogo da sobrevivência mudava de fase. Agora é matar – e se tornar o chefão – ou morrer tentando.

Sem tempo para morrer, esse parecia ser o lema da minha vida, tudo levava a crer que estava indo bem.

Ser chefe parece ser legal né? Só que implica em ter subalternos, gente em quem você manda, que tem que fazer cumprir a sua ordem, porém tem também os ambiciosos, os invejosos, os que você pisou e os que você teve de machucar para ficarem na linha.

Nem sei mais onde ouvi, mas é uma verdade: amigos vêm e vão, porém, inimigos se acumulam!

E agora a pilha estava ficando grande!

Falar que me conhecia já tinha virado fator de risco, aquela que tinha sido minha mãe pagou de novo pelo pecado de me ter trazido ao mundo.

O cretino que se disse meu pai e usou meu nome para ganhar vantagem e pressionar seus desafetos, sumiu tão rápido quanto surgiu, assim que a coisa toda começou a engrossar!

Agora o chefe era eu! E para me manter no topo valia tudo! Já não bastava matar, era necessário dar um exemplo do que seria me desobedecer, me desacatar. Falar contra mim era dar a si uma sentença de morte.

Minha vida se transformou em um rio de sangue, correndo vermelho vivo nas minhas mãos, alimentado por uma legião de despossuídos, sedentos de esperança de uma vida melhor.

Agora era minha responsabilidade cuidar de todos. Ou assim pensavam eles.

Sobreviver, esse foi e continua sendo o meu lema, custe o que custar!

As traições não demoraram a chegar, as guerras por território só fizeram acelerar o processo.

Se eles arregimentavam entre as minhas fileiras, eu subornava e atraía com o doce mel da ganância e do poder, as pessoas do outro lado, seja policial, seja bandido. Para mim, era tudo igual, gado para ser usado e descartado.

Foi nessa espiral de violência e luta pelo poder que eu me transformei numa máquina de sobreviver, cheirando traição no suor frio de quem está perto, no reflexo do olhar de ódio de quem olha de longe e no cheiro do medo de quem entra na sala.

Ainda valia tudo para sobreviver e, como ficava cada vez mais claro, a vida se mantinha na base da sobrevivência do mais forte, e não havia ninguém em quem eu pudesse confiar.

Parece que quanto maior a ganância, menos humanas são as relações, pois se eu tinha que me proteger, assim também o era para meus subordinados. Era uma cascata de terror e medo; sangue e ódio; violência e falta de humanidade.

Tratar bem quem lhe é útil, até que seja a hora de descartar quem não presta mais ou lhe ameace a posição (o que chegar primeiro).

É claro que isso não ia durar muito, mas quem se importa? Afinal o negócio é morrer jovem e fazer um cadáver bonito.

Dormir passou a ser um problema, comer passou a ser um problema, ir ao banheiro passou a ser um problema...

Mais uma vez, a vida foi ficando cada vez mais reduzida a essa necessidade de permanecer vivo.

Não tardou muito, e um número suficiente de inimigos, grandes o bastante, se juntou em torno de um objetivo comum: eu, ou melhor, a minha morte!

É claro que eu já previra isso e montei no morro, escondido de tudo e de todos, uma enfermaria nível UTI, que já tinha sido a minha salvação em outras ocasiões, e que agora não iria me faltar.

Mal sabia eu que até esse plano já tinha sido previsto, e uma contraofensiva já havia sido elaborada!

Um ataque falso, uma fuga esperada (para dentro de nossas trincheiras) e uma traição à espreita.

Tudo certo, nada de novo, já tinha visto esse filme mais vezes do que reprise da sessão da tarde (nossa, tô ficando velho). O que me pegou foi terem adulterado todos os remédios do meu centro cirúrgico.

E agora eu não conseguia sair dessa anestesia, derrubado num coma, ouvindo a tempestade lá fora, sem poder fazer nada, a não ser esperar...

Sabendo que muitos torcem para que nunca saia, que eu morra ou que eu sobreviva; nem sei mais em quem ou em quais acreditar, se até aqui a lei da selva impera.

Ping, ping, ping, preso um mundo sem sons, sem luz, sem vida...

Foi quando ele veio me visitar, com aquela proposta em mãos...

Lobo em pele de CordeiroOnde histórias criam vida. Descubra agora