De volta para a Guilda, entrei discretamente e fui diretamente para o quarto que haviam me designado aos fundos, buscando chamar o mínimo de atenção.
Despedi-me do Gino na rua mesmo, combinando de fazer um acompanhamento da situação do Sr. Tadeu e receber a minha prata quando ele se sentisse melhor.
Sabia que essa parte seria a mais bem recebida, afinal, poder receber uma cura sem custos e pagar somente se os efeitos se verificassem seria um tremendo fator de sucesso. Do ponto de vista legal ou moral, eu não estaria vendendo a cura, mas sim o acompanhamento, de modo que não estaria ferindo meu juramento de sacerdote em ajudar todos que seguissem os ensinamentos Dom.
Bem, com uma certa esticada moral, meio que uma pedalada ética aqui envolvida. Ao menos no caso do Tadeu, o escravagista, ele ainda estava correndo perigo de vida, já que estava cheio de tecido morto prestes a entrar em estado de putrefação dentro dele... Ou seja, eu não o havia curado, não totalmente...
Enfim, quem quer se apegar a tecnicalidades quando grande parte dos meus objetivos foram alcançados? Eu, pelo menos, não, pois o que eu queria mesmo era tomar um banho e dar uma dormida, já que o dia tinha sido bastante longo.
Na cama, mal coloquei minha cabeça de humano no travesseiro (sim, eu precisava dormir dentro da pele, caso alguém entrasse no quarto durante a noite) e já adormeci.
Foi uma noite não muito calma, uma noite em que Ele me procurou.
— Olá, meu Arauto, parece que tem estado ocupado!!!
Uma saudação enigmática Do Um, na sua forma em constante mudança entre todos os seus filhos.
— Olá, faz tempo que não nos falamos. Tenho ouvido aqui e ali seus comentários para transmitir aos nossos irmãos, mas faz tempo que não conversamos diretamente.
— Está tudo bem?
Arrisquei perguntar...
— Sim, no começo achei que não estava entendendo suas ações. Afinal, trouxe você para este mundo para destruir essa praga de humanos, eliminá-los do Meu Mundo. No entanto, penso que sua proposta de fortalecer meus filhos também é bem-vinda.
— Sim, de onde venho, uma das formas de combate é fortalecer os nossos e enfraquecer os outros, especialmente antes de um embate, para garantir um resultado favorável.
— Entendo, não basta apenas destruir, é necessário construir. Como você fez com a aldeia que escolhi para lhe receber neste mundo.
— Interessante a escolha das tecnologias que você introduziu, nada que meus filhos não pudessem reproduzir. Fiquei tocado com suas escolhas. Agradeço em nome deles.
— A escolha do uso de pedra como material de construção, bem diferente do que vi em seu antigo Mundo, mas bastante adequada para aquela comunidade.
— Achei particularmente significativa sua atuação junto aos meus filhos naquele local que chamam de Moinho. Fiquei muito feliz com a mudança que vi.
— Sim, achei que seria de seu agrado. Certamente foi do meu. Alegria, esperança e sorrisos são sempre bem-vindos e nunca são demais!
— Estou aqui para dizer que estou satisfeito com sua estratégia. Penso que somente sangue não teria sido tão eficaz quanto essa sua abordagem de construir e fortificar.
— Sinto-me honrado por suas palavras e feliz que estejamos em sintonia quanto às minhas ações.
— Fico feliz que você não tenha se eximido de sujar as mãos quando foi chamado a intervir, como no caso dos 100 oferecidos como sacrifício para a sobrevivência do Moinho.
— Devo lembrá-lo que, mesmo certeira, sua atuação aqui será pontual, e você terá outros locais para atuar. Tenha um plano para quando eu precisar levá-lo para o próximo palco.
— Ainda há muito a ser feito, continue o bom trabalho.
— Fico feliz por poder ser útil.
— Nesse sentido, tenho um pedido especial a fazer.
— Espero estar à altura do que for demandado! Eu ouço e obedeço.
Afinal, o cara é um Deus, certo?
— Em especial, como resultado de suas ações nas manhãs de pregação junto às crianças e, depois, com as curas para todos, tem crescido o número de meus fiéis entre os – como você – são chamados de mestiços, e até mesmo entre os humanos. Impressionante, não esperava esse tipo de desdobramento.
— Assim, gostaria de pedir que proteja um desses humanos em particular, pois tenho recebido preces fervorosas, e gostaria de agraciá-lo com uma bênção. Poderia atender esse meu capricho?
— Certamente, é só o Senhor me dizer quem é, que eu farei o meu melhor para ajudar essa pessoa.
— Você já a conhece. É a sacerdotisa, a clériga de quem você roubou a habilidade de cura. Ela tem me dirigido longas e profundas preces, e penso que esteja pronta para receber a visita de um de meus sacerdotes.
Nesse momento, comecei a duvidar se era um sonho ou um pesadelo.
Salvar uma sacerdotisa da igreja, nossa inimiga número um?
— O Senhor tem certeza? Digo, ela é uma representante da nossa inimiga, da igreja, não é?
— Irônico, não? E ela se volta para mim em busca de conforto e ajuda? Como não atender?
Aí senti o peso da promessa, ainda mais por ser alguém que eu já havia marcado para ser eliminada, alguém de quem eu já havia tirado os poderes, e agora teria que salvar...
Que ironia! Parece que minha vida agora seria governada por ironias. Espero que não...
Acordei do sonho/pesadelo coberto de suor. Parecia que algo maior do que imaginava havia caído no meu colo, urgia fazer algo.
Para o espaço com a discrição. É hora de agir, antes que a situação ficasse ainda mais complicada. Eu tinha que saber do paradeiro daquela clériga, e era agora!
Saí da pele do sacerdote. Vesti a armadura, coloquei o máximo de roupas escuras e saí pela janela como Scarn, escondido pela noite, rumo à catedral para descobrir como, onde e aonde estava a tal sacerdotisa ou clériga.
Minha cabeça ainda tentava entender o que estava acontecendo: uma representante da Igreja renegando sua fé para abraçar o Deus do "Velho Mundo"? O que será que estava acontecendo?
Escalei o muro, percorri os corredores da ala dos sacerdotes. Sim, parecia tudo calmo.
Mas nada dela nas celas (que é o nome dado aos quartos dos monges e freiras). Aí, já começou a me dar um certo mal-estar.
Fui checar no jardim, que foi o último lugar onde a encontrei, dormindo no jardim – se bem me lembro. Nada!!!
Jardim deserto, só árvores silenciosas mergulhadas na escuridão, um silêncio em meio a um jardim de sombras. Aquele lugar estava parecendo, cada vez mais, um lugar terrível... um cemitério.
Cadê a mulher!?
Só faltavam a casa do Monsenhor e a Catedral, mas não deveria haver ninguém na Catedral a essa hora da noite...
Mas vamos checar, só para ter certeza...
Lá estava ela!
Ufa!!!
Nada fora do normal, uma clériga rezando para os três heróis. Só que não.
Claro que não!
Por ser um sacerdote Do Um, eu sempre conseguia ver a luz de um verdadeiro fiel, e lá estava ela, brilhando forte no peito daquela clériga.
Acho que meus planos terão que ser reformulados...
Agora havia mais uma pessoa para salvar!
Hora de voltar para a Guilda, recolocar a pele do sacerdote Glênio, deitar na cama com a cabeça cheia e começar a pensar em como fazer tudo dar certo, e da melhor maneira possível.
Há trabalho a fazer, Garn!
Bora bolar uma nova estratégia...
Que O Um guie meus passos e ilumine minhas decisões!
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Lobo em pele de Cordeiro
FantasyA história de Garn, o flagelo do Velho Mundo, sacerdote Do Um, trazido para destruir os humanos encarnados que vieram antes dele mas que escolheram trair o Deus Criador desse mundo, criando uma nova Igreja: a Igreja dos Heróis. Esses antigos encar...