Então ele veio...
Não sei quanto tempo ele esteva lá, antes que eu pudesse notar a sua presença.
No começo, parecia uma miragem, algo que só estava lá entre os pings e os tics, quase que como se fosse o contrário do meu batimento cardíaco, quanto mais eu deixava de sentir meu coração teimosamente pulsando, mais presente ele ficava.
Com o tempo, ele se aproximou, cada vez maior a cada ping, mais próximo, mais presente a cada tic, até que pude começar a senti-lo mesmo entre os pings e os tics.
E então ele não ia mais embora!
Se você me pedisse para descrevê-lo, eu diria: enorme, escuro e colorido, grande e profundo, porém quente e peludo. A forma era o mais difícil de perceber, pois parecia que estava em constante mudança, como se ele mesmo não tivesse forma e pudesse – a seu bel prazer – ser o que quer que lhe aprouvesse.
Parece que ele tem uma forma com caraterísticas de um animal (como um lobo), mas, quando você fixa o olhar, essa forma muda para um outro animal (como um carneiro). Assim, ele permanecia em constante mudança de forma, mas cada uma parecia ser a sua verdadeira forma. Muito estranho! Um ser que se parecia com todos os animais, mas sem ser nenhum deles.
Já era noite, hora dos tics, quando ele me falou pela primeira vez:
- Humano, você é feliz? Essa era a vida que você desejava? E – mais importante – essa é a morte que você deseja?
- O Deus desse mundo me devia um favor, então ele me permitiu buscar um e vocês que pudesse me ajudar.
Então ele me explicou que era o Deus Criador de outro Mundo, um outro planeta, e que antes já havia trazido humanos para o seu mundo, tanto para acabar com pragas quanto para levar avanços tecnológicos para a sua civilização.
Parece que essa coisa de troca de funcionários é algo mais comum do que eu imaginava entre os Deuses.
Porém a coisa meio que deu errado...
Embora fossem enviados de Deus (ou seja, Dele mesmo), tão logo se estabeleciam, começavam a divulgar a ideia de um outro deus e criar uma igreja que não o adorava, levando discórdia ao seu mundo e, pior, dividindo a população entre os que eram de origem humana e os seus filhos, descendentes das feras que evoluíram - após milênios de cuidados seus – para as tribos de homens-feras de quem ele tanto se orgulhava.
No começo, tudo ia bem. Ele vinha, escolhia uma alma humana, dava poderes especiais para que pudesse cumprir sua tarefa e, pronto, a reencarnava em um corpo humano.
Porém, com o tempo, os descendentes desses encarnados – que herdaram parte dos poderes dos heróis originais – começaram a abusar dessas bênçãos.
Diziam-se enviados de Deus (bom, em parte estava certos, né?), e fundaram uma nova igreja, longe dos campos e florestas onde Ele estava. Começaram a construir cidades e palácios, nações e catedrais.
Agora, a situação já estava à beira do colapso. As nações Humanas, guiadas por essa igreja e alimentadas pelos chamados milagres, provocados pelos descendentes dos heróis, começaram a depreciar os seus filhos, os verdadeiros herdeiros desse Mundo, roubando suas terras, escravizando suas crianças, caçando-os. Seus filhos estavam em perigo; era necessário fazer algo.
É aí que eu entro nesse esquema. Ele precisa de alguém com ódio dos humanos, que tenha cansado desta sociedade e dessa humanidade predatória para ser o seu Arauto! Um flagelo para expurgar os erros do passado e limpar o seu mundo dos erros que Ele cometeu.
Então, noite após noite, ele me permitiu sonhar com vastos campos plenos de vida, florestas cheias de mistérios e sombras para descansar. Um céu aberto para acolher um olhar ao longe, chuvas que trazem a renovação da Vida. Céus de novas estrelas, que se podem ver e contemplar quão pequena – e vasta – pode ser uma vida.
Ele, quem seus filhos chamam de O Um, aquele que dá e que tira a vida. Criador do Mundo, aquele que provê a comida que sustenta a vida e que os recebe em seus braços depois de sua morte, para renascer de novo e assim perpetuar a sua existência num ciclo de nascimento e morte sem fim.
Aquele que está tanto nos campos e bosques quanto no coração dos seus fiéis, que compartilha o sopro da vida que nos impulsiona a ser mais, a evoluir (e não a ter mais), que sabe que a vida é o partilhar, o dividir, o proteger e ser protegido.
Naquela cama, entre tics e pings, aquela liberdade se tornou meu desejo: de uma nova vida, de uma oportunidade de fazer de novo, de recomeçar do zero.
E então, ele fez o convite:
- Humano, abdique do seu Deus, una-se a mim e eu lhe darei uma nova vida, um novo recomeço, uma oportunidade para trilhar um caminho diferente, num novo corpo, poderoso, com uma força que você - como humano – nunca imaginou! Um dos meus homens-fera, perfeito para você poder exprimir toda essa raiva e ressentimento!
- Deixe-me usar o seu ódio pelos humanos para limpar o meu querido Mundo e salvar os meus muito amados filhos.
- Você abdica da sua vida, do seu Deus, da sua humanidade e me seguirá para meu Mundo como meu enviado?
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Lobo em pele de Cordeiro
FantasyA história de Garn, o flagelo do Velho Mundo, sacerdote Do Um, trazido para destruir os humanos encarnados que vieram antes dele mas que escolheram trair o Deus Criador desse mundo, criando uma nova Igreja: a Igreja dos Heróis. Esses antigos encar...