OS GRITOS RAIVOSOS ECOAVAM da cozinha da casa quando Fabiana se levantou da cama com o bicho de pelúcia preferido seguro pelas mãos. O leão azul encardido que ela chamava de "Dentuço" tinha sido um presente de aniversário de uma tia, a irmã de sua mãe e, desde que o ganhara, nunca mais se separou dele.
Do lado de fora, a rua tranquila do Jardim Europa permanecia em silêncio em quase toda a sua extensão. Na parte interna, a pequena moradora da casa de quatro cômodos caminhou temerosa pelo corredor dos quartos, ainda descalça. Dobrou a esquina que dava para a cozinha e se deparou com a cena mais chocante que já vira na vida.
— Mamãe?
Regina, a mãe da garota, jazia caída no chão conforme uma mancha escura e crescente se formava sob a sua cabeça. Osvaldo, o pai, tentava se equilibrar com os joelhos trêmulos, a se apoiar no tampo da pia. Tinha expressão alarmada no rosto e a culpa brilhava em seus olhos embriagados, avermelhados, ao passo que o rolo de massa de macarrão sujo de sangue escorregava pelos seus dedos.
— Fi-Filha... vá lá pra dentro... Saia daqui!
Fabiana ignorou a ordem. Correu em direção à mulher estirada e se ajoelhou diante dela. Começou a lhe dar palmadinhas no rosto cada vez mais pálido. Tentava reanimá-la desesperadamente, sentindo a barra do pijama que usava se molhar inteiro de sangue. O sangue da sua mãe.
— Fala comigo, mamãe! MAMÃE!
Os gritos que ecoavam na casa chamaram a atenção dos vizinhos que, prontamente, acionaram a polícia. Em pouco mais de uma hora, duas viaturas estavam paradas diante do portão baixo. Uma fumaça espessa escapava pelo basculante da cozinha e um cheiro muito forte de tecido queimado exalava de dentro da casa. Dois policiais invadiram a residência dos Ferraz pela frente. Na parte interna, chamas intensas começavam a lamber o tapete no chão e as cortinas que ladeavam a pia. Ninguém sabia como aquele fogo tinha começado.
— Usem o extintor de incêndio da viatura, rápido!
Desequilibrado, o homem de cabelos ruivos e barba cheia no rosto arredondado tossia, com os pulmões se enchendo da fumaça tóxica ainda a impregnar o cômodo.
— O fogo... a menina... Eu... Eu...
Ele estava com as mãos sujas do sangue da esposa. Ao se depararem com a cena, os agentes deram voz de prisão imediata a Osvaldo, que saiu algemado da própria casa. Do lado de fora, os vizinhos curiosos já formavam uma pequena multidão diante do portão. A filha continuava em choque, chamando pela mãe enquanto os socorristas a conduziam de maca até a ambulância. O homem estava tão embriagado que mal conseguia parar em pé.
— Eu não queria... Eu não queria machucar a Regina! Não queria!
Acabou sendo arrastado até o banco de trás do carro policial e, dali, foi levado direto para a penitenciária regional, de onde nunca mais retornou.
No dia do enterro de Regina, o cemitério estava cheio com os amigos de colégio de Fabiana e com os pais das crianças. Mesmo os mais distantes dela, fizeram questão de prestar homenagem à sua mãe. De todos eles, Beatriz foi a única que não lhe soltou a mão um só minuto. As duas ficaram lado a lado durante toda a cerimônia fúnebre, como irmãs.
Os olhos verdes da garota órfã não deixaram escapar uma só lágrima que fosse. Parecia anestesiada. Olhava para o caixão sendo coberto de terra, com as flores a encimá-lo, mas não parecia perceber o que se sucedia ali de fato. A sua mente jazia em outro lugar. Um lugar onde a dor não a podia alcançar.
Ao final do enterro, ela ficou para receber os cumprimentos dos colegas e de seus pais. Logo em seguida, João Carlos e Virgínia, os pais de Beatriz, a convidaram para ficar com eles e a filha em sua casa nos Jardins, a pouco mais de quatro quilômetros dali. Como não tinha mesmo outro lugar para ir, ela aceitou.
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Rosa e Dália: O Despertar das Bruxas
FantasiaFabiana Ferraz e Beatriz Diniz são amigas inseparáveis desde a infância. Motivadas pelo sonho de estudar Arqueologia e pelo desejo de se aventurar pelo mundo, elas embarcam em uma emocionante expedição universitária a Machu Picchu, no Peru. Lá, muni...