Capítulo 1 - Passado e presente

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BEATRIZ ACORDOU NAQUELA manhã e, de repente, não tinha mais dez anos e nem estava vestida com a fantasia insuportavelmente quente de dália. A sua cama jazia inteira revirada, com o travesseiro a seus pés, o lençol de elástico nas bordas removido de baixo do colchão e o cobertor caído no chão. A noite havia sido intensa e agitada. O pesadelo recorrente que a angustiava há vários anos a atordoara mais que o comum, porém, o despertador que tocava incessantemente no criado-mudo a salvara dele. Demorou algum tempo até que percebesse isso, mas era hora de partir para a viagem rumo ao Peru.

Nunca estive tão ansiosa em minha vida, pensou, prendendo os cabelos compridos cor de ônix com uma xuxinha e ajeitando os pés em seus chinelos.

Tão logo pisou na parte de fora do quarto pequeno de apartamento que dividia com a amiga de longa data, foi recepcionada por uma lufada de vento que arrepiou os pelos dos seus braços. A janela da sala estava completamente arreganhada e, do lado de fora, espiou por algum tempo a metrópole onde morava há menos de dois anos. Santos ficava a noventa quilômetros de onde ela havia nascido e crescido, mas a cidade litorânea do estado de São Paulo a tinha acolhido tão bem que quase nem sentia saudades de casa.

Quase.

Exceto pela mãe, que a vira partir com lágrimas nos olhos pouco antes de ela se aventurar a morar longe de suas asas para cursar a tão sonhada faculdade de Arqueologia, Beatriz não se sentia saudosa de morar no centro urbano de sua origem. Não mais.

Com os pensamentos longínquos, ainda com os flashes evanescentes do sonho que tivera em mente, a garota fechou a janela e rumou para o banheiro. De passagem pela sala, conferiu rapidamente no telejornal matinal sintonizado na televisão a previsão climática para aquele dia. O outono no Hemisfério Sul tinha chegado com toda força naquele ano. Era a metade do mês de abril e ela sabia que devia levar roupas de frio na bagagem.

À porta do lavabo, encontrou Fabiana a escovar os dentes, encurvada diante da cuba da pia. Um micro system pousado em cima do assento do vaso sanitário tocava um CD da cantora britânica Adele. A garota ruiva ensaiava algumas notas desafinadas de "Rolling In The Deep" enquanto dançava frenética, com a boca cheia de espuma. Nem a tinha percebido ali, mas quando enxergou Bia a se divertir com a sua performance musical, caiu no riso.

— Vamos para Machu Picchu, baby!

Beatriz alargou ainda mais o sorriso. Os seus olhos brilhavam de entusiasmo e ela acenou positivamente à exclamação de Fabiana.

— O ônibus de Santos até São Paulo sai em menos de duas horas — disse ela, se encaminhando ao box, pouco antes de apanhar a toalha branca de banho no gancho próximo à porta. — Não podemos atrasar, ou a galera mata a gente!

Fabiana concordou dando a última escovada nos dentes frontais e cuspindo o restante da pasta na cuba.

— A minha mala já está praticamente pronta. Só falta organizar melhor os agasalhos e as calças. A viagem até a Bolívia é longa e eu não quero passar frio no caminho. Aliás, eu detesto frio!

A ruiva fez uma careta ao dizer aquilo. Tão logo guardou a sua escova no copo sobre a pia, viu pelo espelho à sua frente Beatriz fechar a porta do box e ligar o chuveiro para uma ducha rápida. Voltou a cantarolar feliz como um pássaro prestes a sair da gaiola e aproveitou para continuar a sua higiene bucal usando o fio-dental. A faixa do CD agora era "Rumour Has It", uma de suas preferidas.

Um sol tímido ameaçava brilhar por entre as nuvens carregadas sobre a cidade cinzenta quando a dupla deixou o apartamento com destino à rodoviária. De mochilas nas costas e o restante da bagagem em mãos, embarcaram num táxi à porta do prédio de quatorze andares e chegaram a seu destino em menos de quinze minutos. Ansiosas, deixaram o troco da corrida com o motorista. Depois, correram para se juntar ao grupo de amigos da faculdade que as acompanhariam em sua jornada até um dos centros arqueológicos mais conhecidos do mundo.

Rosa e Dália: O Despertar das BruxasOnde histórias criam vida. Descubra agora