Capítulo vinte e quatro.

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...


  O escuro me envolve, como um manto sufocante que me cega e isola. Estou correndo, mas não sei para onde. O chão sob meus pés parece gelado e distante, como se estivesse deslizando em uma superfície de vidro rachado, prestes a ceder. Há algo, ou alguém, na minha frente. Algo que não consigo ver, mas que sinto profundamente. Alguém que conheço. Alguém que está escapando de mim.

  Uma risada familiar ecoa à distância, uma risada que já me trouxe conforto. Mas agora, ela se distorce, transformando-se em um som dissonante, cruel. O riso morre abruptamente, substituído por gritos. Gritos de dor, gélidos, tão agudos que rasgam o silêncio como lâminas.

  Meu coração acelera, batendo com uma força descontrolada. Tento correr mais rápido, mas meus pés parecem estar presos, afundando em algo invisível. Minhas pernas estão pesadas, como se fossem de chumbo, e cada passo é uma luta contra uma força implacável que me puxa para trás.

  Estico meus braços desesperadamente, tentando alcançar essa presença que está se afastando. Consigo ver uma silhueta à frente, mas é indistinta, embaçada pelo nevoeiro denso da minha mente. Cada vez que me aproximo, ela se dissolve, escorrendo pelos meus dedos como areia. O desespero cresce dentro de mim, uma pressão insuportável no peito. Grito com todas as minhas forças, mas o som fica preso na garganta, sufocado pela escuridão que se fecha ao meu redor.

  Sinto a perda, o vazio esmagador de algo insubstituível sendo arrancado de mim. O silêncio volta, impenetrável, e com ele, o vazio. O frio. O fim.

  De repente, silêncio.

  Abro os olhos de uma vez. Estou no meu quarto, mas ainda sinto o peso do sonho. Meu coração está disparado, socando meu peito de maneira insuportável, como se quisesse escapar. A escuridão continua me cercando, sufocante. Minhas mãos procuram o abajur ao lado da cama, e a luz que se acende parece quase uma salvação. Respiro fundo, mas o ar parece denso, difícil de puxar.

  Estou tremendo. Puxo os joelhos para perto do peito, tentando me convencer de que estou segura, que o sonho acabou, mas a sensação permanece. É quase como uma crise, um aperto que não vai embora. Preciso me mexer, me livrar dessa sensação.

  Levanto, os pés descalços tocando o chão frio, e vou até o banheiro. A luz branca me cega por um momento, mas prefiro isso ao escuro de antes. Apoio as mãos na pia e olho para o espelho. Minha expressão é uma mistura de exaustão e desespero que raramente admito, nem para mim mesma. O reflexo no espelho parece mais uma estranha do que eu. Os olhos estão cansados, vazios. Quase não me reconheço.

  Abro a torneira e deixo a água fria escorrer pelas minhas mãos, depois pelo rosto. A sensação é imediata, me traz de volta ao presente, mas ainda há um vazio, uma dor silenciosa que ecoa no fundo da minha mente. Fecho os olhos por um segundo, tentando bloquear as memórias do sonho, mas só consigo lembrar... dele. Dele desaparecendo.

  Eu aperto a borda da pia, tentando conter a dor que não posso apagar. Então, algo inesperado surge, uma lembrança que corta através da escuridão. O sorriso de Enid. O som leve de sua risada, a maneira como ela fez o dia ser... fácil. Leve.

  Respiro fundo, tentando me agarrar a isso. O campo verde. O céu azul. A risada dela ecoando no ar, me fazendo sentir por um momento que o mundo não era tão sufocante. Seu sorriso sempre gigante, me dando oportunidade de observar as pequenas adoráveis presas que ela tinha.

  Abro os olhos novamente e encaro meu reflexo. Dessa vez, algo mudou. Estou mais calma.

  Volto para o quarto. O abajur ainda ilumina a escuridão, mas agora ela não parece tão opressora. Quando deito na cama, sinto algo macio se aproximar de mim. Salem, meu gato, se aninha perto de mim, os olhos brilhando no escuro, como se percebesse que algo está errado. Ele se aconchega ao meu lado, a respiração tranquila, reconfortante.

FLOAT - WenclairOnde histórias criam vida. Descubra agora