Capítulo 3

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Laura Mendonça

  

   O dia amanheceu bonito, de certa forma, e eu me sinto mais leve hoje, embora não consiga identificar exatamente o motivo. Na fazenda, os trabalhos começam cedo. Os trabalhadores já estão acordados mesmo antes do sol nascer, quando o galo canta. O ar fresco da manhã é a melhor parte de estar aqui. Acordei com o canto do galo, me preparei e decidi descer a rampa para o jardim. Sentir a brisa da manhã me trazia uma sensação de leveza que eu não experimentava há algum tempo.

   Me acomodei perto da mesa no jardim e fechei os olhos, permitindo-me aproveitar este leve momento antes que todos começassem a acordar. Com “todos”, refiro-me à minha família. Ouvir as mesmas coisas diariamente pode ser cansativo, não é que eu não os ame, mas a repetição constante se torna exaustiva. Eles não percebem o quanto estou cansada. Desejar algo e não poder tê-lo é uma forma cruel de lembrar que o desejo não se realiza. Já me conformei com o fato de que vou ficar nessa cadeira para sempre, mas meus pais insistem em contratar enfermeiras como se isso fosse resolver alguma coisa. Há um ano faço fisioterapia, e, sinceramente, sinto que nada mudou. Então, para que continuar?

  Espreguicei-me e estiquei os braços, tentando encontrar um pouco de conforto, embora nada pudesse realmente me fazer mais feliz do que voltar a andar.

   O sol começava a espreitar entre as nuvens, iluminando a fazenda com um brilho suave. Não estava muito quente, era algo agradável. As coisas nunca são como queremos. Ouço a voz de Maria, a empregada, e o som dela se aproximando era um lembrete constante de que agora dependia das pessoas para quase tudo. Maria me olhou com um ar de curiosidade, e um sorriso, que não mostrava seus dentes, se formou em seus lábios.

- Bom dia, senhora Laura. Fico feliz que tenha decidido vir para o jardim.

- Não pedi que ficasse feliz.—Respondi secamente, tentando esconder meu desânimo.

- Então, o que vai querer comer?—Ela perguntou, ainda com aquele sorriso irritante em seu rosto, como se eu tivesse feito algo de extraordinário ao sair do quarto.

- O mesmo de sempre.

- Claro, com licença.—Ela disse, animada, e se afastou para preparar o maravilhoso pequeno almoço.

  Enquanto Maria se dirigia para a cozinha, observei os trabalhadores começarem suas atividades. Eles se moviam com uma rotina familiar, cultivando a terra e cuidando dos animais. O ritmo constante do trabalho, apesar de sua simplicidade, parecia oferecer um certo tipo de paz que eu invejava. Eles estavam tão envolvidos em suas tarefas que mal notavam a presença de uma cadeira de rodas entre eles.

   Meus pensamentos vagavam enquanto observava a cena tranquila. A sensação de estar longe do centro da atividade da fazenda era um alívio momentâneo, mesmo que a realidade estivesse sempre presente, aguardando meu retorno ao interior da casa.

    Não demorou muito para eu avistar os meus pais, Maria já deve ter fofocado, este era o meu momento, não era para todo mundo vir pra cá me fazer compainha. Sabia que em breve o silêncio do jardim seria interrompido, os vi se aproximando enquanto eu ainda estava ali, sentada, tentando aproveitar o pouco de paz que restava na manhã, também não tinha como me levantar né, percebesse já que sou uma cadeirante.

- Bom dia, Laura. Fico feliz que tenha decidido vir para fora hoje.— Ele disse, com o tom de voz habitual que misturava carinho e preocupação.

- Bom dia, pai... mãe.—Respondi, tentando esconder a impaciência que sentia sempre que eles começavam com esses discursos de optimismo forçado.

- Laura, nós queríamos conversar com você antes de o dia começar de verdade.— Minha mãe se sentou ao meu lado, seu olhar preocupado como sempre. —Hoje chega o novo enfermeiro, e gostaríamos que você tentasse recebê-lo bem. Ele está aqui para ajudar você.

   Eu já sabia onde aquela conversa ia parar. Era o mesmo roteiro de sempre, o mesmo discurso sobre como eu deveria me abrir para a ajuda que me ofereciam e blablablá, eles nunca iam entender o que uma pessoa sentada nessa cadeira sente.

- Mãe, pai, já passamos por isso antes. Vocês sabem que não é uma questão de como eu recebo ou não os enfermeiros. Eles simplesmente não aguentam o trabalho e acabam indo embora, não tenho culpa.— Minha voz saiu mais amarga do que eu pretendia, mas não havia como evitar.

- Laura, nós sabemos que essa situação é difícil para você, mas o que queremos é que você tenha o melhor cuidado possível. Esse enfermeiro vem com óptimas recomendações, e achamos que ele pode realmente fazer a diferença.

   Meu pai falou. Eu olhei para o jardim, tentando me focar em qualquer coisa que não fosse essa conversa.

- Laura, ele está aqui para te ajudar a recuperar o máximo de independência que você puder. Nós só queremos que você tenha a melhor qualidade de vida possível.

- Eu entendo, mãe. Mas vocês não percebem que para mim isso não é fácil? Vocês falam como se fosse apenas uma questão de receber bem ou mal as pessoas. Não é só isso. É sobre o que eu perdi, o que nunca vou recuperar.

   Minha mãe suspirou, tentando, mais uma vez, encontrar as palavras certas. Ela sempre tentava, mesmo quando era óbvio que nada que ela dissesse poderia mudar o que eu sentia.

- Eu sei, querida. Nós sabemos que isso é uma grande perda para você. Mas, por favor, tente... tente não afastar as pessoas que estão aqui para ajudar. Talvez esse enfermeiro seja diferente, talvez ele consiga te ajudar de uma forma que as outras não conseguiram.

   Eu permaneci em silêncio por um momento, lutando contra o impulso de responder com raiva. Eu sabia que eles estavam tentando fazer o melhor por mim, mas era difícil aceitar que mais uma pessoa entraria na minha vida para tentar “consertar” algo que, na minha visão, não tinha conserto.

- Tudo bem, eu vou tentar.— Respondi finalmente, sem muita convicção.

- Obrigado, filha. Isso é tudo o que pedimos.— Ele sorriu, satisfeito por ter conseguido o que parecia ser um pequeno avanço.

   Meus pais se levantaram, aparentemente aliviados por terem tido a conversa e conseguido a minha concordância. Eu fiquei ali, ainda sentada, olhando para o sol que começava a subir no céu, sentindo o peso de mais uma tentativa de algo que eu já tinha perdido a esperança.

   Mas, por algum motivo, hoje eu estava disposta a tentar. Não porque eu acreditasse que as coisas seriam diferentes, mas porque, de alguma forma, eu queria acreditar que ainda havia algo mais para mim, mesmo que fosse apenas uma fagulha de mudança. Tomava o meu pequeno almoço sozinha, pois os meus pais logo foram fazer suas actividades, por hoje acho que uma trégua está de bom tamanho, mas se eu não gostar desse enfermeiro eu vou fazer com que vá embora como todas as outras enfermeiras, e nem tenho que fazer muito, pois ninguém aguenta o meu comportamento, talvez nem eu.

   Talvez seja infantilidade da minha parte, mas só se percebe certas coisas vivendo, experimentando ou estando do lado de alguém que esteja em tal situação e nem assim se poderá saber o que se sente realmente.

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