Capítulo 73 - Cecília

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Durante minha estadia na cede do MSF, no Rio de Janeiro recebi o treinamento necessário para a missão no Iêmen.
Conheci alguns colegas que seriam enviados para o mesmo lugar que eu e outros que seguiriam para outros países.
Meus dias eram cheios e exaustivos, mas isso foi bom, me ajudou a tirar o foco de coisas que não queria pensar ou lembrar.
Mas vez ou outra me pegava pensando em Bernardo, sobre o quanto gostaria de contar para ele tudo o que estava aprendendo, de dividir com ele as emoções que estava sentindo.
Eu sentia falta das longas conversas que tínhamos, e por mais que alí tivesse feito novos amigos e conversasse bastante com eles, não era igual. A inexplicável sensação de conexão que sentia enquanto Bernardo e eu conversávamos, era algo que buscava ter de novo com outro alguém, mas que era sempre frustrada. E acho que era essa sensação de frustração, por não ter de novo aquilo com alguém, que ainda me fazia lembrar dele.
Eu ansiava por ter de novo outro momento como aqueles que tínhamos, outra conversa como aquelas, mas com outras pessoas. "Qualquer um, por favor!", eu pedia à Deus.
Mas até aqui, não encontrei nenhum, ou "qualquer um".
Quando cheguei ao Iêmen, fiquei chocada com o tamanho do impacto que a guerra causou ao lugar.
Quanto mais era apresentada àquela realidade, mais me sentia ingrata. Eu tinha tudo, sempre tive, eu sabia e era grata. Mas vez ou outra reclamamos, é natural do ser humano reclamar.
Eu jurei nunca mais reclamar, nem mesmo por ser natural.
Queria dizer que fui forte, mas não fui.
Eu chorei muitas vezes, chorei em público, mesmo tentando conter as lágrimas. Mas era no fim do dia que eu chorava de verdade.
O alojamento onde dormimos fica no andar de cima do Hospital Abs, onde trabalho.
Por isso mesmo nosso contato com o mundo exterior é limitado, para nossa segurança.
Tenho uma colega de quarto, Alice. Alice é enfermeira e também brasileira. Fiquei feliz por poder ter uma colega de quarto do mesmo país que eu. Isso me trazia certo conforto e sensação de estar um pouco mais perto de casa.
Passo os dias no andar de baixo trabalhando, e no fim do dia apenas subo as escadas para dormir.
As ligações são limitadas e a internet também.
Pouco tenho falado com papai e Clara. Escrevo sempre que posso para contar mais, já que as ligações são curtas.
Não conto muito sobre todo o sofrimento que vejo aqui, não quero preocupa-los.
Mas são cenas que ficam indo e vindo na minha memória, coisas que sei que jamais conseguirei esquecer.
Aqui vemos de tudo, desnutrição severa, casos de sarampo, colera, difteria. Temos também enfermarias de maternidade, neonatal e pediátrica.
Algumas de traumas e cuidados cirúrgicos e a ala que fico de saúde mental.
Em média por ano, com base nos dados do MSF, no Iêmen são realizadas 497.200 consultas ambulatoriais, 6.900 intervenções cirúrgicas, 12.800 pacientes tratados por sarampo, 37.300 partos assistidos, incluindo 5.160 cesarianas, 11, 900 crianças internadas em programas de nutrição e 20.800 consultas individuais de saúde mental.
Depois de mais de seis anos, o Iêmen tornou-se uma das maiores crises humanitárias do planeta.
Atualmente 80% da população do país precisa de alguma ajuda humanitária e aproximadamente 4 milhões de pessoas precisaram sair de suas casas por causa dos conflitos.
Dentre as pessoas traumatizadas pelas consequências da guerra, atendo em grande maioria crianças que nasceram e cresceram em meio aos conflitos e mulheres que não apenas sofreram com os impactos da guerra, mas que desde muito antes sofrem com a cultura local.
De acordo com pesquisas das Nações Unidas, 32% das iemenitas com idade entre 24 e 32 anos relataram ter se casado antes dos 18, 9% delas antes dos 15.
Em 2020, em relatório publicado pela UNICEF, havia cerca de quatro milhões de meninas casadas no país, das quais 1,5 milhão tinham menos que 15 anos.
Não é raro encontrar entre as pacientes que atendo, casos de mulheres que se casaram aos nove anos e que aos 50 tenham dez filhos.
Se não bastasse toda a parte cultural dos casamentos arranjados e casando suas meninas ainda tão crianças, a guerra trouxe um aumento de 63% de casos de estupro, agressão sexual e violência doméstica de acordo com a ONU.
Uma geração traumatizada.
No Brasil, quando criança, me lembro de ao ver um avião no céu, dar tchau com as mãozinhas e dizer , "Olha, papai, um avião", e ficar toda feliz.
Aqui o que escuto quando passa um avião, são crianças dizendo, " Mãe, vai nos atingir!" e correm para procurar um lugar seguro.
Nada que eu já tenha visto ou vivido se compara ao que vejo e vivo aqui. É uma realidade diferente, jamais experiênciada antes.
A dor do outro só pode ser compreendida quando nos colocamos no mesmo lugar e ainda sim a dor dele continuará sendo apenas compreendida de forma total por ele, mas a empatia muda tudo, não apenas para quem está sendo escutado, mas para quem escuta também. A empatia nos transforma atravéz da dor do outro.

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