Capítulo 1. O Chamado da NAVIM

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A humanidade, antes conectada por fronteiras invisíveis de ideologias, crenças e opiniões, encontrava-se agora fisicamente dividida.

Das cinzas da antiga ordem, surgiram seis sociedades isoladas, cada uma confinada em sua própria célula, vivendo sob a vigilância constante da NAVIM - uma seita obscura que, antes operando nas sombras em paralelo aos governos, emergiu após a guerra como a última esperança para a humanidade.

Com a estrutura social tradicional em colapso, a NAVIM, até então desconhecida, apresentou-se como a única proposta de revitalização global. As nações, economicamente devastadas e sem alternativas, renderam-se sem resistência. Embora separadas por muralhas de aço e tecnologia avançada, o verdadeiro isolamento era ideológico. Cada célula foi projetada para refletir perfeitamente a visão de mundo de seus habitantes, mantidos sob controle por um sistema implacável de manipulação e censura. O que antes era uma polarização digital transformou-se em segregação física. O futuro, segundo a NAVIM, seria decidido pela preservação das "verdades" de cada sociedade, até que apenas uma prevalecesse.

Essas seis Células, cada qual com suas próprias convicções culturais, políticas e religiosas, estavam unificadas apenas pelo controle sutil, mas poderoso, da NAVIM - agora, a nova ordem mundial.

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Os Conservadores.

A primeira célula era habitada pelos defensores fervorosos de valores tradicionais. Aqui, a família e a religião eram as fundações que sustentavam toda a estrutura social. As pessoas vestiam-se de maneira modesta, seus costumes eram rigidamente conservadores, e a moralidade pública era regulada com precisão. Nas praças e templos, a fé no passado como guia para o futuro era celebrada diariamente. Igrejas dominavam as paisagens urbanas, e o patriotismo era um valor inquestionável.
Os jovens desta célula eram ensinados desde cedo a desconfiar do progresso desenfreado e da decadência moral que viam nas outras sociedades. Embora vivessem sob uma aparência de harmonia, a realidade era muito mais sombria. A NAVIM controlava a educação, filtrando cada pedaço de informação para garantir que a ideologia conservadora permanecesse intacta. Programas de televisão e mídias digitais, cuidadosamente selecionados, reforçavam a ideia de que o passado era a única bússola confiável. A tradição era uma arma, e a NAVIM fazia questão de mantê-la afiada.

Saulo despertou com o som suave dos sinos da Igreja Central, que ecoavam por toda a cidade ao amanhecer. Aqueles badalos, que marcavam o início de cada dia, eram a âncora da rotina em sua célula. No bairro onde vivia, as casas de pedra e madeira tinham o mesmo estilo simples e funcional. Cruzes pendiam das portas, e os muros, decorados com passagens bíblicas, serviam como lembretes constantes da fé que governava suas vidas.

Sua mãe, Marta, já estava de pé quando ele desceu as escadas de madeira que rangiam levemente. Ela preparava o café da manhã, algo modesto: pão, frutas e café forte. Marta era uma mulher de poucas palavras, mas sua fé era inabalável. Seu olhar tranquilo denunciava uma serenidade alcançada apenas por aqueles que depositavam completamente suas vidas nas mãos de Deus.

- Bom dia, filho - disse ela, servindo-lhe uma xícara de café.

- Bom dia, mãe. Onde está o pai? - perguntou Saulo, observando a cadeira vazia na mesa.

- Já foi para a igreja. Sabe como ele é - respondeu ela, com um sorriso leve.

Seu pai, Elias, era um homem rigoroso, mas devoto. Como um dos diáconos da Igreja Central, ele estava frequentemente envolvido nas reuniões da comunidade, que tratavam tanto dos assuntos religiosos quanto das poucas questões políticas ainda relevantes. A liderança da célula religiosa era composta principalmente por bispos e anciãos, todos com grande influência sobre a vida de cada cidadão.

Saulo vestiu-se rapidamente, colocando seu uniforme de treino. Embora sua vida fosse profundamente moldada pela fé, ele estava entre os escolhidos para representar a célula nos Jogos da NAVIM. Aquilo era tanto uma honra quanto um fardo. Para a célula religiosa, vencer significava provar que sua fé, e apenas ela, era o caminho certo para a redenção da humanidade.

Ao sair de casa, encontrou seu melhor amigo, Lucas, esperando por ele no portão. Lucas era um rapaz alto e sorridente, com um entusiasmo contagiante que contrastava com a introspecção de Saulo. Eles se conheciam desde crianças, crescendo juntos nas ruas da cidade e compartilhando não apenas a fé, mas também sonhos e medos sobre o futuro.

- Vamos, o treino vai começar em breve - disse Lucas, batendo no ombro de Saulo de maneira amigável.

- Estou pronto - respondeu Saulo, ajustando sua mochila.

Enquanto caminhavam pelas ruas pavimentadas de pedra, conversavam sobre os Jogos e a expectativa de todos na célula.

- Você já ouviu o que estão dizendo? - perguntou Lucas. - Que esse ano, a NAVIM pode modificar as regras novamente. Parece que querem introduzir desafios ainda mais brutais.

- Não me surpreenderia - respondeu Saulo, olhando em volta. O céu estava limpo, e as lojas e comércios começavam a abrir suas portas. Panificadoras, livrarias com temas religiosos, pequenos mercados... tudo ali seguia o padrão de uma sociedade que colocava a fé no centro de tudo. - Eles sempre encontram uma maneira de nos testar.

- Você acha que estamos prontos? - Lucas perguntou, com uma preocupação genuína em seu tom. Ele podia ser um otimista, mas também era realista quanto aos desafios que enfrentariam.

- Não temos escolha - Saulo respondeu, firme. - Temos que estar.

O caminho até a Igreja Central os levou por um parque, onde algumas crianças corriam em torno de uma grande estátua de um anjo segurando uma espada, um símbolo da fé que os guiava. As escolas da célula também estavam próximas, e Saulo podia ver jovens estudantes sendo instruídos não apenas em matérias tradicionais, mas também em doutrinas religiosas, sempre sob o olhar atento dos supervisores.

Eles chegaram à Área de Treinamento ao lado da Igreja. Lá, outros quatro membros do time já estavam à espera. Esther, a instrutora do grupo, era uma mulher imponente de quase trinta anos, com olhos penetrantes e uma presença que comandava respeito. Ela havia sido uma participante de Jogos anteriores e agora assumia a responsabilidade de preparar os novos competidores.

Daniel, outro instrutor da equipe, era o mais velho, com quase cinquenta anos. Sua especialidade era a estratégia. Havia uma calma deliberada em seus movimentos, e Saulo o respeitava profundamente, tanto como mentor quanto como um irmão de fé.

Os irmãos gêmeos Maria e João, com seus dezenove anos, completavam a equipe de treino. João era ágil e tinha um instinto apurado para o combate, enquanto Maria era conhecida por sua inteligência e habilidade com equipamentos tecnológicos, algo raro naquela célula, onde a tecnologia moderna era vista com desconfiança.

- Vocês estão atrasados - disse Esther, cruzando os braços. - Vamos começar.

O treino era intenso, mesclando técnicas de combate físico e exercícios de resistência mental. Esther sempre enfatizava que, mais do que a força ou a habilidade, o espírito deles deveria ser inabalável. Eles não lutariam apenas por suas vidas, mas pela fé de toda a célula.

- Lembrem-se - dizia ela, enquanto caminhava entre os guerreiros em formação. - Não são só corpos que estamos enfrentando na arena. São ideologias, crenças que contradizem a verdade que vivemos aqui. Cada vez que vocês caem, cada vez que falham, é um ataque contra nossa fé. Isso não pode acontecer.

Saulo ouvia atentamente, sentindo o peso da responsabilidade. Ele sabia que sua célula dependia dele, assim como dependia de cada um de seus companheiros. A pressão de provar que a fé era o único caminho para salvar o que restava da humanidade pesava em seus ombros, mas ele também sentia um orgulho profundo em carregar esse fardo.

Após o treino, o grupo se reuniu para uma breve meditação, como faziam ao fim de cada sessão. O mestre Samuel, o guia espiritual da célula, liderava as intercessões, pedindo força, coragem e proteção divina para os competidores.

Ao término da meditação, Saulo sentiu uma mistura de paz e ansiedade. O caminho que ele e seus amigos trilhavam era árduo, mas ele sabia que tudo estava nas mãos de Deus. E ele faria o que fosse necessário para garantir que sua célula prevalecesse. A arena estava se aproximando, e Saulo sabia que sua fé seria testada da maneira mais brutal possível.

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