Capítulo 10

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O caminho para casa no carro de Lino é feito em silêncio, ele parece exausto, como imagino que está mesmo, e eu não sei o que dizer. Assim que pisamos na grama do hospital vomitei toda a bile que tinha dentro de mim. A dor de cabeça foi multiplicada por mil, então resolvi suspender aquele assunto por hora. O olhar da menininha ficou gravado na minha retina. Toda vez que fecho os olhos, até para piscar, a imagem brilha nítida para mim.
Enquanto Lino estaciona e desliga nosso carro elétrico, abro a porta e corro pra fora. Já são 8 da noite e o céu está muito escuro. Ouço Lino me chamando enquanto corro pro jardim dos fundos, mas não ligo. Depois vou me sentir culpado, mas agora realmente não ligo.
Me esgueiro por baixo dos arbustos e da hera da cerca e entro na Clareira.
A Clareira é um espaço escondido nos arbustos decorativos da casa, que não é coberto pelos mesmos, dando uma visão perfeita do céu. Deito de costas na grama e fito o manto negro. Antigamente, diziam que o céu era coberto de estrelas, pontos brilhantes muito lindos que realizavam pedidos, mas hoje não há nada além de um tom pastoso de cinza na escuridão da noite. A poluição deixa tudo com esse tom acinzentado, as plantas daqui de casa são assim também. É estranho como tudo o que se tinha mudou em tão pouco tempo. Ouço uma respiração e quando me viro encontro Lara ajoelhada passando pela vegetação espessa.
- Oi. - Ela diz.
- Oi.
Suspiro, voltando a olhar para a noite.
- Tio... - ela começa, mas eu a corto.
- Lara, eu não vou entrar agora, sim? Desculpa, mas não quero, e não vou, então já pode ir para dentro. Você não entende...
- Não seja bobo! - Ela atira. - Não vim pedir para entrar, te trouxe chocolate. E uma coberta. E um travesseiro. - Ela sorri e se encosta a meu lado, abrindo a coberta. Ficamos deitados por um tempo, sem uma única palavra. Ela é realmente um presente na minha vida, eu merecendo ou não. Quando tudo está uma bagunça, ela aparece e sabe exatamente o que fazer, seja dando bons conselhos, ou só ficando comigo em silêncio. Fui muito "bobo" mesmo. Ela, claramente, entende.

Assim que deixo sentir o braço que apoia a cabeça da minha sobrinha, sei que está na hora de entrar. Não me preocupo com o sereno da noite por que a anos a humidade do ar não é suficiente para criar orvalho. As vozes e chamados que ouvi pararam a alguns minutos, provavelmente desistiram de procurar quem cla não queria ser encontrado. Dificulta um pouco a tarefa, sabe.
Me levanto com cuidado e jogo o cobertor sobre Lara, pegando-a no colo. Depois de alguns minutos tentando sair do emaranhado de arbustos com uma criança adormecida no colo, consigo vencer a vegetação e caminho em direção à porta dos fundos. Não é porque resolvi entrar que quero encarar os olhares de todos.
Passo pela cozinha e D. Nina me vê e abre a boca para avisar os outros, mas eu a silencio pondo meus dedos nos lábios. Em seguida sorrio e pego um pedaço de bolo de laranja de cima da bandeja de prata adornada. Estou faminto. Me pergunto quando foi a última vez que aquela menininha do hospital comeu algo decente, se é que tem comido, de qualquer forma. Todos os "carentes" eram assustadoramente magros e frágeis, com suas roupas sujas e modos selvagens...bem, quem sabe que modos eu teria se tivesse a vida deles. Será que eles também cumprem o par Trinta, ida e volta? Será que eles duram os sessenta anos?
A taxa de morte por acidentes é quase zero, imagino que com uma expectativa de vida curta, as pessoas pararam de arriscar tudo em aventuras radicais e coisas idiotas, como dirigir alcoolizado, pular de pontes, esse tipo de besteiras. As pessoas passaram a, de algum modo, valorizar mais as suas vidas. Pelo menos, acredito que sim, mas eu acreditava em tanta coisa que não passava de ilusões. Deixo Lara deitada no quarto dela e sigo para o meu. Quando apago a luz, desligo junto com ela.

Antes que o tempo acabeOnde histórias criam vida. Descubra agora