Capítulo 17

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Entro pelos fundos de novo, mas dessa vez a D.Nina não está na cozinha. Preciso tomar banho, lavar essa terra e me recompor um pouco. Sei que é patético, eu já tenho quase 18 de ida, mas...fico lembrando de quando eu desci sério e fundo pela primeira vez, quando as crises eram fortes e muito frequentes. Meu pai estava sofrendo muito com as doenças dos anos terríveis, tinha 5 de volta (55 anos). Eu era tão jovem, vulnerável. Nunca passei necessidades, nunca tive que "me virar pra ter as coisas", era fraco e enquanto via meu pai, as vezes eu pensava, Por que ele não morre logo? Por que fica sofrendo assim? E minha mãe foi enlouquecendo lentamente com as crises, Lino que ia para a faculdade, eu no meu isolamento social... Até que a memória do meu pai se foi completamente, um golpe muito duro, que ninguém pensou que ela iria aguentar. Mas ela aguentou.
Eu estava com insônia, então me remexia na cama, levantava e ia vagando pela casa à noite, deitava no sofá, nas cadeiras da sala de jantar, ia até à cozinha para comer, voltava para o quarto e fazia tudo outra vez. Um dia, ou melhor, uma noite, estava passando pela porta do quarto dos meus pais, e como estava entreaberta, ouvi os sussurros deles.

- Quem eu sou? - disse meu pai, tendo um ataque de tosse em seguida.
- Você é Benjamim, meu querido marido, e vai voltar a dormir agora, está bem? - Com toda a paciência, ela falava como se com uma criança pequena perdida.

- Quem é você?
- Gabriela, anjo. A mãe dos seus filhos, Leandro e Lucas.
- Ah. Eu me casei com você?
- Sim...
- Você é tão linda, Gabriela. Tive sorte - ela sorriu.

- Eu que tive sorte de ter você na minha vida, Benjamim. Volte a dormir, anjo. O sol vai aparecer daqui a pouco.
- Mas...pode ficar aqui comigo?
- É claro. Ficarei até não precisar mais de mim. - outro sorriso triste.
- Então fique para sempre.
- Vou ficar.

Saí na ponta dos pés e até hoje minha mãe não sabe que escutei essa conversa. Esse foi o primeiro blackout dele, quando se esqueceu quem era. Depois, ele começou a sumir de repente só para ser encontrado horas depois desnorteado, vagando, falando coisas sem sentido. Certa vez, ele estava caído perto da cerca "viva" murmurando: Como pode? Eu vi. Eu vi. Como pode? Eu vi....
O que ele viu, foi pro túmulo com ele.
Quando sua dupla de trinta acabou, todos ficaram desolados aqui em casa. Lino assumiu o posto de homem da casa, minha mãe, o de viúva, e eu de caçula problemático. Nesse mesmo ano Lino conheceu Mave, e meses depois já eram pais. Ter uma data para morrer faz a pessoa querer aproveitar o tempo, eu acho. Filhos mais jovens, menos anos para se aposentar, essas coisas.

Uma vez ouvi dizer que tudo o que nos acontece tem um propósito para acontecer.
Talvez seja verdade, talvez não. Mas acredito que a gente tenha que se agarrar nisso para ir levando, sabe? Para não enlouquecer pensando em o que fizemos para merecer tal coisa, ou para não repetir os mesmos erros. A humanidade precisa se agarrar a isso para que seja justificável condenar pessoas a um prazo de validade, para que sempre tenha uma luz no fim do túnel. Para que tenhamos esperança. Talvez um dia chegarão até nós e mostrarão o por quê de termos vivido desse modo, uma explicação como: isso foi necessário para que pudessem...

Entretanto, de novo, isso é só mais um talvez que lembramos diariamente antes de sentar e esperar que passem os sessenta anos.

Depois do banho, deito virado para cima na cama e olho pro teto. Daqui a duas semanas eu completo 18 anos de ida. Já se passaram 18 anos de todos os que tenho e o máximo que fiz foi olhar para o teto, para as escadas, para o jardim...olhar, só olhar, tão passivamente....

Triiiiiim! Triiiiiim!

Alguns segundos se passam desde que tocou o telefone da sala.

- Seu Lucas? - gritam lá de baixo. - Telefone pro senhor.
- Já estou descendo.
Quem será que é a uma hora dessas? Deve ter acordado todos da casa com esse toque alto e vibrante. Desço correndo as escadas, em consideração a tarifa exorbitante que esta pessoa está pagando, e pego o telefone.

- Lucas Cosanto, quem fala?
- Luke, oi, é o Marco.
- Marco! Por que ligou essa hora? De quem é o telefone?
- É da Alice. Desculpe, sei que está bem tarde mas..é o Elísio.

Antes que o tempo acabeOnde histórias criam vida. Descubra agora