NiUm calafrio percorre meu corpo assim que os primeiros raios da manhã penetram pelas cortinas do meu quarto.
Meu aniversário.
Ninguém preparou nada muito especial para mim, até por que não é uma comemoração feliz. Mesmo assim, minha parte infantil gostaria de receber uma festa.
A semana que se seguiu ao...ocorrido com o Elísio foi parada e opaca, uma 'anestesia' que foi bem vinda. Mas hoje eu sei que não posso me trancar aqui em cima, com tudo fechado, e contar as telhas solares até adormecer. Hoje eu devo a mim mesmo a volta para o mundo. De algum modo sei que esse dia será longo e importante. O calafrio involuntário foi só mais um indício.
Meus sonhos dessa noite foram escuros e me assustaram por que todas as pessoas que apareceram nele estão mortas, salvo uma. Eu. Seja lá o que isso quer dizer.
Cenas "pré morte" encheram minha noite. Meu pai caído no jardim dizendo eu vi, Sofia chorando quando bateu no carro, Elísio parado, olhando fixo para uma corda de varal...e no meio disso eu estava parado, assistindo passivo enquanto o desespero tomava seus rostos. Essas mortes tem alguma ligação, mas não sei ainda qual.Lentamente me levanto e calço meus sapatos. Uma olhada no espelho quase me derruba de susto. Não sei quem é aquela criatura, mas não sou eu. Ele é magro demais, com os ossos aparecendo, pele amarelada e olhos fundos, cabelo cobrindo os olhos e uma barba mal feita. À apenas alguns dias, bom, alguns vários, eu estava bem, forte e com carne. Agora, pareço morto.
Ham.. Só que ainda não....
Assim que desço as escadas sinto cheiro de comida e percebo o quanto estou faminto. Bolo de laranja, carne, suco, pão de arroz e outras coisas enchem a mesa. Me permito sentir vivo novamente, testo meus sentidos e gosto da sensação.
- Lucas! Cortou o cabelo, e fez a barba! Que bom que voltou.
- É bom estar de volta, Lino. Bom dia a todos.Estão todos a mesa, mãe, Lino, Mave, Escobar e Lara. Exibem expressões de surpresa, mas de felicidade também, gosto de pensar que é por me ver.
Lara está parecendo uma boneca, com um vestido floral e pequenos enfeitos de borboletas no cabelo. Borboletas são outro mito, assim como todos os outros "animais", como são chamados os seres não humanos que existiam na Terra. Lara pisca para mim e me manda um beijo, com mímica finjo que pego o beijo e guardo no peito. Ela sempre adorou essa brincadeira, e sua risada enche a mesa de café da manhã.
- Vai comer, filho?
- Sim, estou faminto. Como estão as coisas?
O queixo da mãe cai, e ela arregalados os olhos.
- Como-como assim? - a mãe pergunta.
- Estão todos bem? O que teem feito...Depois desses dias, quero ser menos egoísta e saber mais da minha família, então estou tentando ser simpático, e admito, não é assim tão difícil. Chega a ser engraçada a expressão de surpresa dela. Não sou muito de falar, muito menos de perguntar coisas pessoais, e isso é um motivo para que agora eu tente ser mais aberto.
- Bem...ontem terminei de fazer a manta de tricô em que estava trabalhando, e, modéstia à parte, ficou muito bonita. Posso te mostrar mais tarde, mas já vou avisando que é da Lara, não vai adiantar chorar e pedir " por favorzinho, mãezinha!!" que eu não vou dar.
Amo vê-la nesse humor, e tem sido tão raro. Sorrio sinceramente.
- Eu adoraria. E prometo não roubar a manta para mim.
Eles me olham como se tivessem crescido duas cabeças em mim. Acho que estavam acostumados ao Lucas melancólico. Mas não mais.
- Aliás, Luke - diz Mave - Feliz aniversário!
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Antes que o tempo acabe
Science FictionEm um planeta Terra futurista (mas não tanto assim), o jovem Lucas leva a vida sem expectativas, sem o que ele chama de Grande Motivo. Em meio a seus problemas adolescentes, crises existenciais, obrigações e exigências da vida, e a perda de amigos e...