Resolvi estabelecer-me aqui na minha terra, município de Viçosa, Alagoas, e logo planeei adquirir a propriedade S. Bernardo, onde trabalhei, no eito, com salário de cinco tostões.
Meu antigo patrão, Salustiano Padilha, que tinha levado uma vida de economias indecentes para fazer o filho doutor, acabara morrendo do estômago e de fome sem ver na família o título que ambicionava. Como quem não quer nada, procurei avistar-me com Padilha moço (Luís). Encontrei-o no bilhar, jogando bacará, completamente bêbedo. Está claro que o jogo é uma profissão, embora censurável, mas o homem que bebe jogando não tem juízo. Aperuei meia hora e percebi que o rapaz era pexote e estava sendo roubado descaradamente.
Travei amizade com ele e em dois meses emprestei-lhe dois contos de réis, que ele sapecou depressa na orelha da sota e em folias de bacalhau e aguardente, com fêmeas ratuínas, no Pão-sem-Miolo. Vi essas maluqueiras bastante satisfeito, e quando um dia, de novo quebrado, ele me veio convidar para um S. João na fazenda, afrouxei mais quinhentos mil réis. Ao ver a letra, fingi desprendimento:
- Para que isso? Entre nós... Formalidades.
Mas guardei o papel.
Achei a propriedade em cacos: mato, lama e potó como os diabos. A casa-grande tinha paredes caídas, e os caminhos estavam quase intransitáveis. Mas que terra excelente!
À noite, enquanto a negrada sambava, num forrobodó empestado, levantando poeira na sala, e a música de zabumba e pífanos tocava o hino nacional, Padilha andava com um lote de caboclas fazendo voltas em redor de um tacho de canjica, no pátio que os muçambês invadiam. Tirei-o desse interessante divertimento:
- Por que é que você não cultiva S. Bernardo?
- Como? perguntou Padilha esfregando os olhos por causa da fumaça e encostando-se a um mamoeiro que murchava ao calor do fogo.
- Tratores, arados, uma agricultura decente. Você nunca pensou? Quanto julga que isto rende, sendo bem aproveitado?
Luís Padilha revelou com a mão e com o beiço ignorância lastimável num proprietário e, sem ligar importância ao assunto, voltou às rodas interrompidas e às caboclas. Mas de madrugada, numa carraspana terrível, importunou-me gemendo palavras desconexas. A cada solavanco do carro de bois que nos conduzia à cidade, levantava a cabeça:
- Tudo rico, seu Paulo. Vai ser uma desgraceira.
Agarrava-se a um fueiro do carro e punha-se a vomitar. Depois pegava no sono para acordar agoniando e arrotando:
- Arados, não há nada como os arados.
Apareceu-me no dia seguinte, ainda com vestígios do pifão:
- Seu Paulo Honório, venho consultá-lo. O senhor, homem prático...
- Às ordens.
- Creio que já lhe disse que resolvi cultivar a fazenda.
- Mais ou menos.
- Resolvi. Aquilo como está não convém. Produz bastante, mas poderá produzir muito mais. Com arados... O senhor não acha? Tenho pensado numa plantação de mandioca e numa fábrica de farinha, moderna. Que diz?
Burrice. Estragar terra tão fértil plantando mandioca!
- É bom.
E não prestei mais atenção ao caso, deixei que ele se entusiasmasse só e fosse discutir o seu projeto no Gurganema, à noite, ao som do violão. Realmente transformou-se. Nas pedras do Paraíba, com uma garrafa de cachaça, aperreava os companheiros de farra - declamando sementes e adubos químicos. Tornou-se regularmente vaidoso, desejava aprender agronomia, e em pouco tempo a cidade inteira conheceu as plantações, as máquinas, a fábrica de farinha.
- Como vai a lavoura, Padilha?
A princípio respondia, depois compreendeu o ridículo e deu para se esquivar, magoado com as perfídias dos amigos.
- Selvagens! rosnava aguentando as batotas no bacará. Vamos para diante.
E a gente ficava sem saber se ele se referia aos parceiros que o pelavam ou aos camaradas que mangavam dele. Procurou-me e desabafou:
- Selvagens! Um empreendimento de vulto, o senhor está vendo, e esses burros vêm com picuinha. Aqui ninguém entende nada, seu Paulo, isto é um lugar infeliz. Aqui só se cogita de safadeza e pulhice.
Cheio de amargura, abalada a decisão dos primeiros dias, confessou-me que tinha tentado contrair um empréstimo com o Pereira.
- Cavalo! Fiz uma exposição minuciosa, demonstrei cabalmente que o negócio é magnífico. Não acreditou, disse que estava no pau de arara. E eu calculei que talvez a transação lhe interessasse. Quer desembolsar aí uns vinte contos?
Examinei sorrindo aquele bichinho amarelo, de beiços delgados e dentes podres.
- Ó Padilha, gracejei, você já fechou cigarros?
Padilha comprava cigarros feitos.
- É mais cômodo, concordei, mas é mais caro. Pois, Padilha, se você tivesse fechado cigarros, sabia como é difícil enrolar um milheiro deles. Imagine agora que dá mais trabalho ganhar dez tostões que fechar um cigarro. E um conto de réis tem mil notas de dez tostões. Vinte contos de réis são vinte mil notas de dez tostões. Parece que você ignora isto. Fala em vinte contos assim com essa carinha, como se dinheiro fosse papel sujo. Dinheiro é dinheiro.
Padilha baixou a cabeça e resmungou amuado que sabia contar. Saiu, voltou outras vezes, insistindo.
- Eu sou capitalista, homem? Você quer-me arrasar?
Padilha rezingava e oferecia a hipoteca de S. Bernardo.
- Bobagem! S. Bernardo não vale o que um periquito rói. O Pereira tem razão. Seu pai esbagaçou a propriedade.
Afinal prometi vagamente:
- Está bem. Vou refletir.
No outro dia ainda estava refletindo:
- Vamos ver, Padilha. Dinheiro é dinheiro.
Passei uma semana nesse jogo, colhendo informações sobre a idade, a saúde e a fortuna do velho Mendonça. Quando me decidi, sujeitos prudentes juraram que eu estava doido.
Padilha recebeu os vinte contos (menos o que me devia e os juros), comprou uma tipografia e fundou o Correio de Viçosa, folha política, noticiosa, independente, que teve apenas quatro números e foi substituída pelo Grêmio Literário e Recreativo. Azevedo Gondim elaborou os estatutos, e na primeira sessão de assembleia geral Padilha foi aclamado sócio benemérito e presidente honorário perpétuo.
Relativamente à agricultura Luís Padilha acuou, esperando uns catálogos de máquinas, que nunca chegaram. Começou a fugir de mim. Se me encontrava, encolhia-se, fingia-se distraído, embicava o chapéu. No vencimento da primeira letra adoeceu. Fui visitá-lo e achei-o escondido na sala de jantar, jogando gamão com João Nogueira. Vendo-me, atrapalhou-se tanto que os dedos magros, queimados, de unhas roídas, tremiam chocalhando os dados.
Daí em diante encantou-se. Disseram-me que tinha ensebado as canelas para S. Bernardo.
- Que estará fazendo por lá?
A última letra se venceu num dia de inverno. Chovia que era um deus nos acuda. De manhã cedinho mandei Casimiro Lopes selar o cavalo, vesti o capote e parti. Duas léguas em quatro horas. O caminho era um atoleiro sem fim. Avistei as chaminés do engenho do Mendonça e a faixa de terra que sempre foi motivo de questão entre ele e Salustiano Padilha. Agora as cercas de Bom-Sucesso iam comendo S. Bernardo.
Dirigi-me à casa-grande, que parecia mais velha e mais arruinada debaixo do aguaceiro. Os muçambês não tinham sido cortados. Apeei-me e entrei, batendo os pés com força, as esporas tinindo. Luís Padilha dormia na sala principal, numa rede encardida, insensível à chuva que açoitava as janelas e às goteiras que alagavam o chão. Balancei o punho da rede. O ex-diretor do Correio de Viçosa ergueu-se, atordoado:
- Por aqui? Como vai?
- Bem, agradecido.
Sentei-me num banco e apresentei-lhe as letras. Padilha, com um estremecimento de repugnância, mudou a vista:
- Eu tenho pensado nesse negócio, tenho pensado muito. Até perdi o sono. Ontem amanheci com vontade de lhe aparecer, para combinar. Mas não pude. Semelhante chuva...
- Deixemos a chuva.
- Estou em dificuldades sérias. Ia propor uma prorrogação com juros acumulados. Recurso não tenho.
- E a fábrica, os arados?
Luís Padilha respondeu ambiguamente:
- Um inverno deste esculhamba tudo. Recurso não tenho, mas o negócio está garantido. A prorrogação...
- Não vale a pena. Vamos liquidar.
- Ora liquidar! Já não lhe disse que não posso? Salvo se quiser aceitar a tipografia.
- Que tipografia! Você é besta?
- É o que tenho. Cada qual se remedeia com o que tem. Devo, não nego, mas como hei de pagar assim de faca no peito? Se me virarem hoje de cabeça para baixo, não cai do bolso um níquel. Estou liso.
- Isso não são maneiras, Padilha. Olhe que as letras se venceram.
- Mas se não tenho! Hei de furtar? Não posso, está acabado.
- Acabado o quê, meu sem-vergonha! Agora é que vai começar. Tomo-lhe tudo, seu cachorro, deixo-o de camisa e ceroula.
O presidente honorário perpétuo do Grêmio Literário e Recreativo assustou-se:
- Tenha paciência, seu Paulo. Com barulho ninguém se entende. Eu pago. Espere uns dias. A dívida só é ruim para quem deve.
- Não espero nem uma hora. Estou falando sério, e você com tolices! Despropósito não! Quer resolver o caso amigavelmente? Faça preço na propriedade.
Luís Padilha abriu a boca e arregalou os olhos miúdos. S. Bernardo era para ele uma coisa inútil, mas de estimação: ali escondia a amargura e a quebradeira, matava passarinhos, tomava banho no riacho e dormia. Dormia demais, porque receava encontrar o Mendonça.
- Faça o preço.
- Aqui entre nós, murmurou o desgraçado, sempre desejei conservar a fazenda.
- Para quê? S. Bernardo é uma pinoia. Falo como amigo. Sim senhor, como amigo. Não tenciono ver um camarada com a corda no pescoço. Esses bacharéis têm fome canina, e se eu mandar o Nogueira tocar fogo na binga, você fica de saco nas costas. Despesa muita, Padilha. Faça preço. Debatemos a transação até o lusco-fusco. Para começar, Luís Padilha pediu oitenta contos.
- Você está maluco! Seu pai dava isto ao Fidélis por cinquenta. E era caro. Hoje que o engenho caiu, o gado dos vizinhos rebentou as porteiras, as casas são taperas, o Mendonça vai passando as unhas nos babados...
Perdi o fôlego. Respirei e ofereci trinta contos. Ele baixou para setenta e mudamos de conversa. Quando tornamos à barganha, subi a trinta e dois. Padilha fez abate para sessenta e cinco e jurou por Deus do céu que era a última palavra. Eu também asseverei que não pingava mais um vintém, porque não valia. Mas lancei trinta e quatro. Padilha, por camaradagem, consentiu em receber sessenta. Discutimos duas horas, repetindo os mesmos embelecos, sem nenhum resultado.
Resolvi discorrer sobre as minhas viagens ao sertão. Depois, com indiferença, insisti nos trinta e quatro contos e obtive modificação para cinquenta e cinco. Mostrei generosidade: trinta e cinco. Padilha endureceu nos cinquenta e cinco, e eu injuriei-o, declarei que o velho Salustiano tinha deitado fora o dinheiro gasto com ele, no colégio. Cheguei a ameaçá-lo com as mãos. Recuou para cinquenta. Avancei a quarenta e afirmei que estava roubando a mim mesmo. Nesse ponto cada um puxou para o seu lado. Finca-pé. Chamei em meu auxílio o Mendonça, que engolia a terra, o oficial de justiça, a avaliação e as custas. O infeliz, apavorado, desceu a quarenta e oito. Arrependi-me de haver arriscado quarenta: não valia, era um roubo. Padilha escorregou a quarenta e cinco. Firmei-me nos quarenta. Em seguida roí a corda:
- Muito por baixo. Pindaíba.
Descontando o que ele me devia, o resto seria dividido em letras. Padilha endoideceu: chorou, entregou-se a Deus e desmanchou o que tinha feito. Viesse o advogado, viesse a justiça, viesse a polícia, viesse o diabo. Tomassem tudo. Um fumo para o acordo! Um fumo para a lei!
- Eu me importo com lei? Um fumo!
Tinha meios. Perfeitamente, não andava com a cara para trás. Tinha meios. Ia à tribuna da imprensa, reclamar os seus direitos, protestar contra o esbulho. Afetei comiseração e prometi pagar com dinheiro e com uma casa que possuía na rua. Dez contos. Padilha botou sete contos na casa e quarenta e três em S. Bernardo. Arranquei-lhe mais dois contos: quarenta e dois pela propriedade e oito pela casa. Arengamos ainda meia hora e findamos o ajuste.
Para evitar arrependimento, levei Padilha para a cidade, vigiei-o durante a noite. No outro dia, cedo, ele meteu o rabo na ratoeira e assinou a escritura. Deduzi a dívida, os juros, o preço da casa, e entreguei-lhe sete contos quinhentos e cinquenta mil réis. Não tive remorsos.
VOCÊ ESTÁ LENDO
SÃO BERNARDO GRACILIANO RAMOS
RomanceTodos os direitos reservados a seu respectivo autor e editora