Fui indo sempre de mal a pior. Tive a impressão de que me achava doente, muito doente. Fastio, inquietação constante e raiva. Madalena, Padilha, d. Glória, que trempe! O meu desejo era pegar Madalena e dar-lhe pancada até no céu da boca. Pancada em d. Glória também, que tinha gasto anos trabalhando como cavalo de matuto para criar aquela cobrinha.
Os fatos mais insignificantes avultaram em demasia. Um gesto, uma palavra à toa logo me despertavam suspeitas.
Mulher de escola normal! O Silveira me tinha prevenido, indiretamente. Agora era aguentar as consequências da topada, para não ser besta.
Aguentar! Ora aguentar! Eu ia lá continuar a aguentar semelhante desgraça? O que me faltava era uma prova: entrar no quarto de supetão e vê-la na cama com outro.
Atormentava-me a ideia de surpreendê-la. Comecei a mexer-lhe nas malas, nos livros, e a abrir-lhe a correspondência. Madalena chorou, gritou, teve um ataque de nervos. Depois vieram outros ataques, outros choros, outros gritos, choveram descomposturas e a minha vida se tornou um inferno.
Um dia, de passagem pela fazenda, o dr. Magalhães almoçou comigo. Espreitando-o, notei que as amabilidades dele para Madalena foram excessivas. Efetivamente nas palavras que disseram não descobri mau sentido; a intenção estava era nos modos, nos olhares, nos sorrisos. Houve, segundo me pareceu, cochichos e movimentos equívocos.
À noite não consegui dormir. Passei horas sentado, odiando Madalena, que se enroscava num canto da cama, as pernas encolhidas apertando o estômago.
Com o dr. Magalhães, homem idoso! Considerei que também eu era um homem idoso, esfreguei a barba, triste. Em parte, a culpa era minha: não me tratava. Ocupado com o diabo da lavoura, ficava três, quatro dias sem raspar a cara. E quando voltava do serviço, trazia lama até nos olhos: deem por visto um porco. Metia-me em água quente, mas não havia esfregação que tirasse aquilo tudo.
Que mãos enormes! As palmas eram enormes, gretadas, calosas, duras como casco de cavalo. E os dedos eram também enormes, curtos e grossos. Acariciar uma fêmea com semelhantes mãos!
As do dr. Magalhães, homem de pena, eram macias como pelica, e as unhas, bem aparadas, certamente não arranhavam. Se ele só pegava em autos!
Madalena ressonava. Tão franzina, tão delicada! Ultimamente ia emagrecendo.
Levantei-me e aproximei-me da luz. As minhas mãos eram realmente enormes. Fui ao espelho. Muito feio, o dr. Magalhães; mas eu, naquela vida dos mil diabos, berrando com os caboclos o dia inteiro, ao sol, estava medonho. Queimado. Que sobrancelhas! O cabelo era grisalho, mas a barba embranquecia. Sem me barbear! Que desleixo!
No dia seguinte encontrei Madalena escrevendo. Avizinhei-me nas pontas dos pés e li o endereço de Azevedo Gondim.
— Faz favor de mostrar isso?
Madalena agarrou uma folha que ainda não havia sido dobrada.
— Não tem que ver. Só interessa a mim.
— Perfeitamente. Mas é bom mostrar. Faz favor?
— Já não lhe disse que só interessa a mim? Que arrelia!
— Mostra a carta, insisti segurando-a pelos ombros.
Madalena defendia-se, ora levantando o papel com os braços estirados, ora escondendo-o atrás das costas:
— Vá para o inferno, trate da sua vida.
Aquela resistência enfureceu-me:
— Deixa ver a carta, galinha.
Madalena desprendeu-se e entrou a correr pelo quarto, gritando:
— Canalha!
D. Glória chegou à porta, assustada:
— Pelo amor de Deus! Estão ouvindo lá fora.
Perdi a cabeça:
— Vá amolar a puta que a pariu. Está mouca, aí com a sua carinha de santa? É isto: puta que a pariu. E se achar ruim, rua. A senhora e a boa de sua sobrinha, compreende? Puta que pariu as duas.
D. Glória fugiu com o lenço nos olhos.
— Miserável! bradou Madalena.
E eu só sabia dizer:
— Mostra a carta, perua.
Madalena rasgou o papel em pedacinhos e atirou-os pela janela:
— Miserável!
Saiu como um redemoinho. No corredor ainda gritou:
— Assassino!
Atordoado, murmurei:
— Cachorra!
E fiquei olhando os pedaços de papel que na manhã de vento esvoaçavam pelo jardim, entre as folhas das roseiras. Longe, no salão ou na cozinha, Madalena continuava a gritar:
— Assassino!
Os outros nomes feios que ela me havia dito não tinham significação. Aquele tinha uma significação. Era o que me atormentava. Mulheres, criaturas sensíveis, não devem meter-se em negócios de homens.
Antes dela, a única pessoa que, na tábua da venta, me tachou de assassino foi Costa Brito, pela seção livre da Gazeta. Justamente quando acabava de dar-lhe o troco, tinha-me encangado a Madalena. Canga infeliz! Não era melhor que eu
tivesse quebrado uma perna? Mais vale uma boa amigação que certos casamentos.
Assassino! Como achara ela uma ofensa tão inesperada? Acaso? Ou teria lido o jornal do Brito? O mais provável era Padilha haver referido alguns mexericos que por aí circulam. Sim senhor! Estava o Padilha mudado em indivíduo capaz de fazer mal. Que graça! O Padilha! Recordei-me do caso do Jaqueira, mas a recordação desapareceu, e comecei a dizer mentalmente:
— Assassino! Assassino!
Encolerizei-me por estar perdendo tempo com tolices.
— Madalena, d. Glória, Padilha, puta que pariu a todos.
Ali malucando, e a gente do eito à vontade, cobrindo mato. Espreguicei-me. Uma noite sem dormir! Depois estremeci e olhei as mãos. As minhas mãos eram enormes, com efeito.
O Jaqueira... Ah! sim! tinha sido anos atrás.
De repente achei que Madalena estava sendo ingrata com o pobre do Casimiro Lopes. Afinal...
Assassino! Que sabia ela da minha vida? Nunca lhe fiz confidências. Cada qual tem os seus segredos. Seria interessante se andássemos dizendo tudo uns aos outros.
Cada um tem os seus achaques. Madalena, que vinha da escola normal, devia ter muitos. Podia eu conhecer o passado dela? O presente era ruim, via-se que era ruim.
Ainda em cima ingrata. Casimiro Lopes levava o filho dela para o alpendre e embalava-o, cantando, aboiando. Que trapalhada! que confusão! Ela não tinha chamado assassino a Casimiro Lopes, mas a mim. Naquele momento, porém, não
vi nas minhas ideias nenhuma incoerência. E não me espantaria se me afirmassem que eu e Casimiro Lopes éramos uma pessoa só.
O Padilha! Cabra ruim é que desgraça um homem. Quem havia de supor que o Jaqueira...
Outra vez o Jaqueira. Aqui vai, resumido, o caso do Jaqueira. Jaqueira era um sujeito empambado, e os moleques, as quengas de pote e esteira, batiam nele. Jaqueira recebia as pancadas e resmungava:
— Um dia eu mato um peste.
Toda a gente dormia com a mulher do Jaqueira. Era só empurrar a porta. Se a mulher não abria logo, Jaqueira ia abrir, bocejando e ameaçando:
— Um dia eu mato um peste.
Matou. Escondeu-se por detrás de um pau e descarregou a lazarina bem no coração de um freguês. No júri, cortaram a cabeça por seis votos (patifaria). Saiu da cadeia e tornou-se um cidadão respeitado. Nunca mais ninguém buliu com o
Jaqueira.
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SÃO BERNARDO GRACILIANO RAMOS
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