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Era domingo, de tarde, e eu voltava do descaroçador e da serraria, onde tinha estado a arengar com o maquinista. Um volante empenado e um dínamo que emperrava. O homem prometera endireitar tudo em dois dias. Contratempo. Montes de madeira, algodão enchendo os paióis.
— Desleixados.
À beira do riacho, topei a velha Margarida sentada numa pedra, lavando as canelas finas como gravetos.
— Boa tarde, mãe Margarida.
— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, respondeu a negra procurando reconhecer-me com o nariz e com a orelha.
Descobriu-me entre cheiros e ruídos:
— An!
— Como vai isso, mãe Margarida? A saúde?
— Aqui vamos dando, meu filho. Melhor do que mereço a Deus, disse a velha enxugando na saia de riscado os cambitos das pernas.
— Falta alguma coisa lá no rancho?
— Falta nada! Tem tudo, a sinhá manda tudo. Um despotismo de luxo: lençóis, sapatos, tanta roupa! Para que isso? Sapato no meu pé não vai. E não me cubro. Só preciso uma esteira. Uma esteira e o fogo.
— Está direito, mãe Margarida. Passe bem. E saí, agastado com Madalena.
Avistei na outra banda Marciano, que tangia o gado.
— Espera lá.
Atravessei a pinguela e fui ver o último produto limosino-caracu.
— Magreirão.
Não estava, mas achei que estava.
— Não me responda, entupa-se.
A culpada era Madalena, que tinha oferecido à Rosa um vestido de seda. É verdade que o vestido tinha um rasgão. Mas era disparate.
— Deitasse fora, foi o que eu disse a Madalena. Se estava estragado, era deitar fora. Não é pelo prejuízo, é pelo desarranjo que traz a esse povinho um vestido de seda.
Madalena respondeu-me com quatro pedras na mão, e ficamos de venta inchada uma semana. Eu por mim remoí um rancor excessivo.
O telhado da serraria era uma nódoa vermelha que as chuvas, aqui e ali, haviam tingido de preto. Na outra margem do riacho a cabeça curvada de Margarida mexia-se lentamente por cima das hastes do capim. E, subindo uma vereda, a figurinha de Marciano colava-se às reses.
— Estúpida! exclamei com raiva.
E pensei no vestido da Rosa, nos sapatos e nos lençóis da velha Margarida.
— Desperdício.
Depois recordei o volante e o dínamo.
— Estúpida!
Está visto que Madalena não tinha nada com o descaroçador e a serraria, mas naquele momento não refleti nisso: misturei tudo e a minha cólera aumentou. Uma cólera despropositada. Esqueci os presentes que, há alguns anos, a Rosa me comeu
(pó de arroz, voltas de conta) e as despesas que fiz com Margarida, até automóvel ao sertão, até clichês para o jornal do Gondim. O que me pareceu foi que Madalena estava gastando à toa.
— À toa, percebem?
Repeti para convencer-me:
— À toa. Desperdício.
Por cima do capim-gordura já não se via a cabecinha branca de Margarida. Num cotovelo do caminho o vulto de Marciano tinha desaparecido. Com o descambar do sol, o telhado da serraria estava mais vermelho.
Não seria mau despedir o maquinista.
— Que gente!
Concentrei-me no caso do dínamo, que era o que me havia predisposto a considerar prodigalidades os sapatos, os lençóis e o vestido de seda.
Depois tranquilizei-me. Arredar o maquinista, sim senhor, boa solução.
Demorei-me um instante vendo um casal de papa-capins namorando escandalosamente. Uma galinhagem desgraçada. Dentro de alguns dias aquilo se descasava, cada qual tomava seu rumo, sem dar explicações a ninguém. Que sorte!
E dirigi-me a casa. No alpendre Madalena, Padilha, d. Glória e seu Ribeiro conversavam. Com a minha chegada calaram-se.
Puxei uma cadeira e sentei-me longe deles. Era possível que a palestra não me interessasse, mas suspeitei que estivessem falando mal de mim. Provavelmente. D. Glória sempre com segredinhos ao ouvido de seu Ribeiro. E Madalena escutando o Padilha. O Padilha, que tinha uma alma baixa, na opinião dela. Para o inferno. Tão bom era um como o outro. Entretidos, animados. Conspiração. Talvez não fosse nada. Mas para quem, como eu, andava com a pulga atrás da orelha! Aborrecia.
Estavam constrangidos, certamente adivinhando o que eu pensava. Padilha mastigava com os dentes estragados o sorriso servil.
Levantei-me, encostei-me à balaustrada e comecei a encher o cachimbo, voltando-me para fora, que no interior da minha casa tudo era desagradável.
No fim do pátio um moleque passou, com um bodoque na mão. Estava ali para que servia a escola. Vadiando, matando passarinhos, num dia de descanso, bom para soletrar a cartilha e riscar papel.
Seis contos de tábuas, mapas, quadros e outros enfeites de parede. Seis contos!
Carrancudo, olhei de esguelha para Madalena, que ficou sossegada, como se aquilo não tivesse sido feito por ela.
Acendi o cachimbo, furiosamente, e procurei distrair-me. O rancho de Margarida escondia-se entre as folhas das bananeiras. Marciano saiu do estábulo e veio vindo, banzeiro, derreando-se; diante da casa-grande tirou o chapéu e escondeu o cigarro. A pedreira, lá em cima, estava quase invisível depois que o caminho para ela se tinha fechado.
A prefeitura não queria mais comprar pedras, as construções na fazenda estavam terminadas. E mestre Caetano, gemendo no catre, recebia todas as semanas um dinheirão de Madalena. Sim senhor, uma panqueca. Visitas, remédios de farmácia, galinhas.
— Não há nada como ser entrevado.
Necessitava, é claro, mas se eu fosse sustentar os necessitados, arrasava-me.
Além de tudo vestido de seda para a Rosa, sapatos e lençóis para Margarida. Sem me consultar. Já viram descaramento assim? Um abuso, um roubo, positivamente um roubo.
Voltei a sentar-me. Madalena entrou a falar com o Padilha, mas não percebi o que diziam. O constrangimento foi desaparecendo. Padilha tinha os olhos baixos.
Por que era que eu não punha o Padilha fora de casa, aquele parasita que me levava cento e cinquenta mil-réis por mês com a tapeação da escola e estava fuxicando, visivelmente fuxicando?
Virei o rosto e descansei a vista no pátio, muito alvo, coberto de pedra miúda e areia. Andavam ali àquela hora pombos como os diabos, voando baixo, passeando, emproados, beliscando o chão. Contei uns cinquenta. Perdi a conta, recomecei sem resultado. Eram bem duzentos.
Recordei o tempo em que aquilo só tinha muçambês e lama. O riacho, um pouco de água turva num sulco estreito e tortuoso, derramava-se pela várzea, empapando o solo. E as cercas do Mendonça avançando.
Que diferença! Senti desejo de levantar-me e exclamar:
— Vejam isto. Estão dormindo? Acordem. As casas, a igreja, a estrada, o açude, as pastagens, tudo é novo. O algodoal tem quase uma légua de comprimento e meia de largura. E a mata é uma riqueza. Cada pé de amarelo! cada cedro! Olhem o descaroçador, a serraria. Pensam que isto nasceu assim sem mais nem menos?
Padilha continuava tagarelando com Madalena. Ergui os ombros:
— Para o inferno, para a casa da peste!
Seu Ribeiro aprovava com gravidade as tolices de d. Glória.
Casimiro Lopes veio sentar-se num degrau da calçada. Picando fumo com a faca de ponta e preparando o cigarro de palha, deitava os olhos de cão ao prado, ao açude, à igreja, às plantações. Pobre do Casimiro Lopes. Ia-me esquecendo dele.
Calado, fiel, pau para toda a obra, era a única pessoa que me compreendia.
Mandou-me um sorriso triste. Estirei o beiço, dizendo em silêncio:
— Isto vai ruim, Casimiro.
Casimiro Lopes arregaçou as ventas numa careta desgostosa.
Os outros continuavam a zumbir. Sebo! Uns insetos. Não valia a pena prestar atenção a semelhantes insignificâncias. Gente besta.
Ergui-me, bocejando. O que eu estava era cansado. O dia inteiro no campo, inquirindo, esmiuçando. Senti as pernas bambas. Cansado.
A noite chegava. Um pretume no interior da casa. Lembrei-me do dínamo encrencado. Mais esta. Deixei o alpendre e entrei:
— Maria das Dores, acenda os candeeiros.
O pequeno berrava como bezerro desmamado. Não me contive: voltei e gritei para d. Glória e Madalena:
— Vão ver aquele infeliz. Isso tem jeito? Aí na prosa, e pode o mundo vir abaixo. A criança esgoelando-se!
Madalena tinha tido menino.

SÃO BERNARDO GRACILIANO RAMOSOnde histórias criam vida. Descubra agora