À noite parecia-me ouvir passos no jardim. Por que diabo aquele Tubarão não ladrava? O safado do cachorro ia perdendo o faro.
Erguia-me, pegava o rifle, soprava a luz, abria a janela:
— Quem está aí?
Seria inimigo, gente dos Gama, do Pereira, do Fidélis? Pouco provável. As ameaças tinham cessado: eu e Casimiro Lopes criávamos ferrugem. Instintivamente, resguardava-me colado à parede. Julgava distinguir um vulto.
— Quem está aí? É bicho de fôlego ou é marmota? Não responde não?
E lá ia no silêncio um tiro que assustava os moradores, fazia Madalena saltar da cama, gritando.
Fechava a janela e acendia o candeeiro.
— Que foi? gemia Madalena aterrada.
— São os seus parceiros que andam rondando a casa. Mas não tem dúvida: qualquer dia fica um diabo aí estirado.
Madalena abraçava-se aos travesseiros, soluçando.
Um assobio, longe. Algum sinal convencionado.
— É assobio ou não é? Marcou entrevista aqui no quarto, em cima de mim? É só o que falta. Quer que eu saia? Se quer que eu saia, é dizer. Não se acanhe.
Madalena chorava como uma fonte.
Entristecia-me. Grosseiro, monstruosamente grosseiro.
E se as passadas e o assobio não fossem por causa dela? Ah! Sendo assim, eu picado para linguiça não pagava o que devia. E se as passadas e o assobio não existissem? Lembrava-me de uma noite em que me aperreei de verdade e puxei a lambedeira, com medo de um rato. Há neste mundo cada engano! E decidia corrigir-me:
— Vamos deixar de choradeira. Lá por assobiarem no pomar e passearem no jardim não é preciso a senhora se desmanchar em água. É melhor acabar com essa cavilação.
Madalena chorava, chorava, até que por fim, cansada de chorar, pegava no sono. Encolhia-me à beira da cama, para evitar o contacto dela. Quando ia adormecendo, percebia o ranger de chave em fechadura e o rumor de telhas arrastadas. Despertava num sobressalto e continha a respiração. Quem estaria futucando portas? Quem estaria destelhando a casa?
Aproximava-me de Madalena, observava-lhe o rosto. Teria ouvido? Ou estaria a fingir que dormia?
Levantava-me, arrastava uma cadeira, sentava-me. Madalena ressonava.
Com certeza ninguém tinha bulido na fechadura nem nas telhas. Maluqueiras de sonho. Talvez as pisadas também tivessem sido abusão de sonho. Um pesadelo. Isso. Um pesadelo. Era possível que o assobio fosse grito de coruja.
Uma pancada no relógio da sala de jantar. Que horas seriam? Meia? uma? uma e meia? ou metade de qualquer outra hora?
Não podia dormir. Contava de um a cem, e dobrava o dedo mindinho; contava de cem a duzentos, dobrava o seu vizinho; assim por diante, até completar mil e ter as duas mãos fechadas. Depois contava cem, e soltava o dedo grande; mais cem, o fura-bolo; e quando chegava a dois mil, as duas mãos estavam abertas. Repetia a leseira, imaginava para cada dedo que se movia um conto de réis de lucro no balanço, o que me rendia fortuna imensa, tão grande que me enjoava dela e
interrompia a contagem.
Segunda pancada no relógio. Uma hora? uma e meia? Só vendo. Erguia-me, pisava com força. Madalena continuava a dormir.
Destrancava e trancava a porta do corredor. Tornava a destrancar, tornava a trancar. E examinava o rosto de Madalena. Que sono! Ali descansada, e eu me roendo por dentro. Descansada como se tudo estivesse muito direito. Tinha desejo de acordá-la, recomeçar a contenda em que vivíamos. Dormir assim, quando eu estava preocupado, seriamente preocupado, não era justo. Preocupado com quê?
Afinal que fazia ali, com a mão na chave e os olhos esbugalhados para Madalena?
— Por que diabo estou mexendo nisto?
Ah! sim! ver as horas. Empurrava a porta, atravessava o corredor, entrava na sala de jantar. Sempre era alguma coisa saber as horas.
Sentava-me no meu lugar à mesa. No começo das nossas desavenças todas as noites aqui me sentava, arengando com Madalena. Tínhamos desperdiçado tantas palavras!
— Para que serve a gente discutir, explicar-se? Para quê?
Para quê, realmente? O que eu dizia era simples, direto, e procurava debalde em minha mulher concisão e clareza. Usar aquele vocabulário, vasto, cheio de ciladas, não me seria possível. E se ela tentava empregar a minha linguagem
resumida, matuta, as expressões mais inofensivas e concretas eram para mim semelhantes às cobras: faziam voltas, picavam e tinham significação venenosa.
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SÃO BERNARDO GRACILIANO RAMOS
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