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Conforme declarei, Madalena possuía um excelente coração. Descobri nela manifestações de ternura que me sensibilizaram. E, como sabem, não sou homem de sensibilidades. É certo que tenho experimentado mudanças


nestes dois últimos anos. Mas isto passa.


As amabilidades de Madalena surpreenderam-me. Esmola grande. Percebi depois que eram apenas vestígios da bondade que havia nela para todos os viventes. Paciência. Eu não devia esperar nem esses sobejos - e o que viesse era lucro. Vivemos algum tempo muito bem.


Lembram-se de que deixei a mesa aborrecido com d. Glória. Pois, passados minutos, Madalena me trouxe uma xícara de café e deu a entender que estava arrependida de haver provocado o incidente.


- Foi uma leviandade.


- Foi, balbuciou Madalena vermelhinha, foi inconsideração.


- Antes de falar, a gente pensa.


- Com certeza, disse ela bastante perturbada. Esqueci que os dois eram empregados e deixei escapar aquela inconveniência. Ah! foi uma inconveniência e grande.


Aí eu peguei a xícara de café e amoleci:


- Não, assim também não. Para que exagerar? Houve apenas incompreensão. Obrigado, pouco açúcar. Incompreensão, é o termo. Eu explico. Aqui não é como lá fora. O cinema, o bar, os convites, a loteria, o bilhar, o diabo, não temos nada disso, e às vezes nem sabemos em que gastar dinheiro. Quer que lhe diga? Comecei a vida com cem mil-réis alheios. Cem mil-réis, sim senhora. Pois estiraram como borracha. Tudo quanto possuímos vem desses cem mil-réis que o ladrão do Pereira me emprestou. Usura de judeu, cinco por cento ao mês.


Madalena ouviu atenta, aprovando, com modos de menina bem-educada:


- Acredito, acredito. O que há é que ainda não conheço o meio. Preciso acostumar-me.


Chamei Casimiro Lopes, entreguei-lhe a xícara e a bandeja. Depois acendi o cachimbo:


- O que sinto...


Ergui-me:


- Nunca me arrependo de nada. O que está feito está feito. Mas enfim cara feia não bota ninguém para diante. E aquilo que eu azuni a d. Glória...


- Coitada! Ela nem estava prestando atenção à conversa. Falou por falar.


- Foi uma dos diabos. Pois faça-me um favor: mostre a ela, por alto, que não tive intenção de magoá-la. Uma pessoa idosa e respeitável... Que não tive intenção, ouviu? Eu sou mesmo um sujeito meio azuretado.


Veem que estávamos brandos como duas bananas. E assim passamos um mês. Por insistência dela, dei-lhe ocupação:


- Faça a correspondência. Quer ordenado. Perfeitamente, depois combinaremos isso. Seu Ribeiro que lhe abra uma conta.

SÃO BERNARDO GRACILIANO RAMOSOnde histórias criam vida. Descubra agora