Uma semana depois, à tardinha, eu, que ali estava aboletado desde meio-dia, tomava café e conversava, bastante satisfeito. No melhor da conversa Azevedo Gondim entrou sem cerimônia e atirou uma inconveniência que não tinha tamanho:
- Ah! O senhor está aqui? Eu vinha dar os parabéns a d. Madalena. Foi bom encontrá-lo. Minhas felicitações.
- Que história é essa? perguntei estremecendo.
- O casamento, explicou Azevedo Gondim. É em que se fala. O senhor não tinha dito nada... Quando é isso?
Não respondi. Madalena contou os fios do bordado. D. Glória imobilizou-se, com uma xícara na mão. Tive desejo de torcer o pescoço do Gondim, que, percebendo a tolice, se encostou à parede, raspando o queixo. Levantei-me, cheguei à janela para disfarçar o constrangimento. Como Gondim se aproximasse, rosnei:
- Você está bêbedo?
- Julguei que não fosse segredo. Todo o mundo sabe.
- Idiota.
E voltei a sentar-me. Acanhado, as orelhas num fogaréu, agarrei-me ao hospital de Nossa Senhora da Conceição e ao Grêmio Literário e Recreativo, que levava uma existência precária, com as estantes cheias de traças e abrindo-se uma
vez por ano para a posse da diretoria.
- Que utilidade tem isso?
Azevedo Gondim sentou-se, pouco a pouco serenou:
- É uma sociedade que presta bons serviços, seu Paulo.
- Lorota! O hospital, sim senhor. Mas biblioteca num lugar como este! Para quê? Para o Nogueira ler um romance de mês em mês. Uma literatura desgraçada...
Azevedo Gondim, aferrando-se a uma ideia, gira em redor dela, como peru:
- A instrução é indispensável, a instrução é uma chave, a senhora não concorda, d. Madalena?
- Quem se habitua aos livros...
- É não habituar-se, interrompi. E não confundam instrução com leitura de papel impresso.
- Dá no mesmo, disse Gondim.
- Qual nada!
- E como é que se consegue instrução se não for nos livros?
- Por aí, vendo, ouvindo, correndo mundo. O Nogueira veio da escola sabido como o diabo, mas não sabia inquirir uma testemunha. Hoje esqueceu o latim e é um bom advogado.
- Entretanto o senhor acha o hospital necessário. E por que não deita fora os seus tratados de agricultura?
- É diferente. Em todo o caso suponho que os médicos estudam menos nos livros que abrindo barrigas, cortando vivos e defuntos em experiências. Eu, nas horas vagas, leio apenas observações de homens práticos. E não dou valor
demasiado a elas, confio mais em mim que nos outros. Os meus autores não vieram olhar de perto os homens e as terras de S. Bernardo.
Madalena balançava a cabeça:
- Perfeitamente. O que há é que não estamos acostumados a pensar assim. Assisti um dia destes a uma fita no cinema, e creio que aprendi mais que se visse aquilo escrito. Sem contar que se gasta menos tempo.
- E não se enche o quengo com estopadas, acrescentei. Vocês engolem muita bucha, Gondim. Há por aí volumes que cabem em quatro linhas.
D. Glória estava quase dormindo. Azevedo Gondim, aturdido, agastado, ergueu os ombros:
- Cá para mim os livros são úteis. Se o senhor julga que são inúteis, deve ter lá as suas razões.
- Você vê que me refiro às histórias fiadas do Grêmio.
- O pior é que o que é desnecessário ao senhor talvez seja necessário a muitos, disse Madalena.
- Sem dúvida, a beleza, triunfou Azevedo Gondim. É o que se quer. Harmonia, beleza, entende?
- Ora sebo!
D. Glória levantou-se e entrou. Como o assunto estivesse reduzido a cinza, calamo-nos. Azevedo Gondim tentou atiçá-lo, inutilmente.
- Que poeira, hem? com o nordeste.
Retirou-se.
Animei-me e avizinhei-me de Madalena:
- Está vendo? Por aí já falam. E só em que falam, pelo que disse o Gondim.
Nenhuma resposta.
- Não torno a pôr os pés aqui. Primeiro porque não quero prejudicá-la, segundo porque é ridículo. Naturalmente a senhora já refletiu.
Madalena soltou o bordado:
- Parece que nos entendemos. Sempre desejei viver no campo, acordar cedo, cuidar de um jardim. Há lá um jardim, não? Mas por que não espera mais um pouco? Para ser franca, não sinto amor.
- Ora essa! Se a senhora dissesse que sentia isso, eu não acreditava. E não gosto de gente que se apaixona e toma resoluções às cegas. Especialmente uma resolução como esta. Vamos marcar o dia.
- Não há pressa. Talvez daqui a um ano... Eu preciso preparar-me.
- Um ano? Negócio com prazo de ano não presta. Que é que falta? Um vestido branco faz-se em vinte e quatro horas.
Ouvindo passos no corredor, baixei a voz:
- Podemos avisar sua tia, não?
Madalena sorriu, irresoluta.
- Está bem.
- Já acabaram aquela discussão pau? perguntou d. Glória da porta. Eu estava morrendo de sono.
- E eu. O culpado foi o Gondim, que tem ideias extravagantes.
Procurei maneira de formular o pedido, mas perturbei-me e não atinei com o que devia dizer:
- D. Glória, comunico-lhe que eu e sua sobrinha dentro de uma semana estaremos embirados. Para usar linguagem mais correta, vamos casar. A senhora, está claro, acompanha a gente. Onde comem dois comem três. E a casa é grande, tem uma porção de caritós.
D. Glória começou a chorar.
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SÃO BERNARDO GRACILIANO RAMOS
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