D. Glória gostava de conversar com seu Ribeiro. Eram conversas intermináveis, em dois tons: ele falava alto e olhava de frente, ela cochichava e olhava para os lados. Quando me via, calava-se.
Compreendo perfeitamente essas mudanças. Fui trabalhador alugado e sei que de ordinário a gente miúda emprega as horas de folga depreciando os que são mais graúdos. Ora, as horas de folga de d. Glória eram quase todas.
Dormia, almoçava, jantava, ceava, lia romances à sombra das laranjeiras e atenazava Maria das Dores, que endoidecia com a colaboração dela. Queixava-se de tudo: dos ratos, dos sapos, das cobras, da escuridão. Afetava na minha presença uma atitude de vítima. Não se cansava de gabar a cidade, fora de propósito. Passava parte dos dias no escritório.
Seu Ribeiro tratava-a por excelentíssima senhora (Madalena era apenas excelentíssima). Julguei perceber, por certas palavras, gestos e silêncios, que ela ia ali deplorar a sorte da sobrinha. Estava sempre ao pé da carteira, amolando.
Madalena batia no teclado da máquina. Seu Ribeiro escrevia com lentidão trêmula, às vezes se aperreava procurando a régua, a borracha, o frasco de cola, que se ausentavam, porque d. Glória tinha o mau costume de mexer nos objetos e não os pôr nunca onde os encontrava. Eu me danava com essa desordem, fechavaa cara, dava ordens secas rapidamente e saía para não estourar. Enfim desabafei. Num dia quatro o balancete do mês passado não estava pronto.
- Por que foi esse atraso, seu Ribeiro? Doença?
O velho esfregou as suíças, angustiado:
- Não senhor. É que há uma diferença nas somas. Desde ontem procuro fazer a conferência, mas não posso.
- Por quê, seu Ribeiro?
E ele calado.
- Está bem. Ponha um cartaz ali na porta proibindo a entrada às pessoas que não tiverem negócio. Aqui trabalha-se. Um cartaz com letras bem grandes. Todas as pessoas, ouviu? Sem exceção.
- Isso é comigo? disse d. Glória esticando-se.
- Prepare logo o cartaz, seu Ribeiro.
- Perguntei se era comigo, tornou d. Glória diminuindo um pouco.
- Ora, minha senhora, é com toda a gente. Se eu digo que não há exceção, não há exceção.
- Vim falar com minha sobrinha, balbuciou d. Glória reduzindo-se ao seu volume ordinário.
- Sua sobrinha, enquanto estiver nesta sala, não recebe visitas, é um empregado como os outros.
- Eu não sabia. Pensei que não interrompesse.
- Pensou mal. Ninguém pode escrever, calcular e conversar ao mesmo tempo.
D. Glória saiu descrevendo um ângulo reto: esgueirou-se da carteira até a parede e, beirando-a, alcançou a porta, que se abriu e fechou silenciosamente. Sentei-me e comecei a confrontar o diário com o razão. Seu Ribeiro aproximou-se
para auxiliar-me.
- Obrigado.
Seu Ribeiro aprontou, com o canivete e a régua, um quadrado de papelão. Madalena levantou-se, cobriu a máquina, trouxe-me as cartas, esperou que eu terminasse a leitura delas e retirou-se. Assinei as cartas e meti-as nos envelopes.
- Que é que d. Glória vem fuxicar aqui, seu Ribeiro?
- Nada de importância, respondeu o guarda-livros. A senhora d. Glória é um coração de ouro e versa diferentes temas com proficiência, mas eu, para ser franco, não a tenho escutado com a devida atenção.
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SÃO BERNARDO GRACILIANO RAMOS
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