GODOFREDO DE OLIVEIRA NETO
S. Bernardo é o segundo romance de Graciliano Ramos, lançado em 1934, um ano após a publicação de Caetés. A crítica o considera a mais importante obra de ficção do movimento modernista envolvendo o regime fundiário e os conflitos sociais no Nordeste brasileiro. S. Bernardo firmou Graciliano Ramos como um dos maiores romancistas de toda a literatura brasileira. A linguagem despojada do escritor é comumente comparada — numa visão impressionista e sem
embasamento teórico — à aridez do sertão e ao reduzido vocabulário do sertanejo, personagem que mobilia a sua narrativa. De fato, são por todos sobejamente conhecidas, além da nobreza e da parcimônia com que Graciliano faz uso do idioma, as preocupações do autor com o uso da língua portuguesa. Chegou a escrever à esposa que, quando terminou de compor o romance, tratou de “traduzi-lo” para “brasileiro”, entenda-se variante brasileira da língua portuguesa. A aproximação entre língua escrita e língua falada incluía-se nas reivindicações dos autores contemporâneos de Graciliano, como mostra, por exemplo, a tentativa, frustrada, de Mário de Andrade de elaborar a sua Gramatiquinha da fala brasileira.
Manuel Bandeira (“Evocação do Recife”) batia na mesma tecla.
Algumas desavenças em torno da autenticidade dos originais de Graciliano Ramos, que a Editora Record tratou de definitivamente resolver, são conhecidas dos especialistas. S. Bernardo padece menos dessa crítica por ter sido publicado
várias vezes durante a vida do autor.
A história de S. Bernardo se passa na década de trinta. O narrador, Paulo Honório, cinquenta anos, tenta revisitar dramas da sua vida e conflitos internos que até o momento em que o livro era escrito permaneciam inexplicáveis. Nem a
fazenda S. Bernardo, que Paulo Honório comprou por preço irrisório, nem a professora Madalena, a quem contratou para alfabetizar as crianças do seu empreendimento rural e com quem acaba se casando, deram-lhe o sossego que tanto buscava. Resta-lhe a escrita; talvez ela lhe devolva a paz desejada. Mas os fatos e o tempo não voltam. Há, assim, em função desse tipo de narrativa, uma constante transição entre passado e presente, já que o narrador, além de nós, leitores, é também o destinatário da história que ele tenta reeditar.
A referência a um projeto, a um imaginário, avulta logo no primeiro parágrafo, na frase: “Antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão do trabalho.”
Essa divisão do trabalho refere-se à divisão social das tarefas. Para Paulo Honório, a língua não constitui um território homogêneo, mas, ao contrário, ela se decompõe em linguagens especializadas: “Padre Silvestre ficaria com a parte moral e as citações latinas; João Nogueira aceitou a pontuação, a ortografia e a sintaxe; prometi ao Arquimedes a composição tipográfica; para a composição literária convidei Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, redator e diretor do Cruzeiro. Eu traçaria o plano, introduziria na história rudimentos de agricultura e pecuária, faria as despesas e poria o meu nome na capa.”
Verifica-se, pois, que Paulo Honório encontra, na prática corrente da língua, estratos de conhecimento e de competência que devem estar presentes no seu livro, mas que ele próprio não pode assumir. Planejar foi fácil, materializar o plano, porém, em forma de livro, para alguém sem experiência literária, é outro capítulo, por isso o recurso às competências locais.
Dois capítulos do romance em apreço deixam entrever com clareza a composição intelectual da obra e, de quebra, a visão artística do Graciliano Ramos-escritor: o capítulo 1, já referido, onde vem exposta a questão arte/ linguagem, e o 19, a partir do qual tem início a metamorfose do corpo do narrador-personagem.
No primeiro capítulo o leitor enxerga com todas as letras a conflituosa relação entre a capacidade do narrador de imaginar o livro e a sua efetiva realização através da escrita. Um dos convidados para construir o livro S. Bernardo não
entendeu o recado. “Vá para o inferno, Gondim. Você acanalhou o troço. Está pernóstico, está safado, está idiota. Há lá ninguém que fale dessa forma!” Se Gondim é pernóstico, é tanto pelo seu estilo — inadequação entre a escrita e a coisa
a dizer — como também pela inadequação entre o que se diz e a experiência que se quer transmitir. A língua escrita não consegue dar conta do ímpeto de contador de Paulo Honório: “João Nogueira queria o romance em língua de Camões, com
períodos formados de trás para diante. Calculem.” A norma lusa é caricaturada, comparada à língua de Camões. É o peso da norma clássica impedindo que o narrador passe para a forma escrita a história que tem em mente. Resta a língua
falada. A oralidade, aparentemente, é a única modalidade linguística que permitiria ao narrador levar a cabo a sua tarefa. A escrita, entretanto, possui exigências que a afastam contínua e sistematicamente da oralidade. Graciliano não está procurando propriamente uma realidade oral, mas buscando aproximar a carga simbólica da escrita dos constituintes simbólicos da prática corrente, que são, esses, redutíveis a
fórmulas orais. O essencial da história que o narrador tem na memória — ou na imaginação — não pode ser compartilhado. Aquela realidade, inevitavelmente encharcada de fantasia, só poderá ser descrita pelo próprio Paulo Honório.
Assim, em consequência da dificuldade em dominar a língua escrita, vale dizer as regras da arte, o empreendimento-livro S. Bernardo parece ameaçado. A arte, porém, é imperativa. Paulo Honório ouve o pio de uma coruja. Nesse momento o
ato de escrever é exigido não pela técnica, não pelo livro, mas por um elemento exterior e mais profundo. A escrita, enquanto técnica, é relegada para plano inferior, ao passo que a cena passa a ser ocupada por uma motivação
intransmissível. O impulso para a escrita é determinado por um elemento exterior, numa atmosfera noturna, onde o homem perde um pouco as fronteiras do cotidiano e do racional e se torna mais permeável aos signos da natureza. Paulo Honório, então, já não faz cálculos ligados à escrita, mas é antes a força da pulsão que o arrasta para essa escrita. O ato se torna isento de cálculo; gratuito, como um ato de
autêntica criação. O narrador confessa que é a coruja a desencadeadora do processo narrativo. Ave noturna, animal pressago, portador de elementos conotando a morte ou a tragédia, mas também a possibilidade do conhecimento.
Animal claramente negativo no texto, “aves amaldiçoadas”, por ele mesmo e pela noite que o envolve e na qual se afirma como animal essencial. A noite. Esta, por vezes, mas com menor impacto, é representada por outro símbolo: “Aqui sentado à mesa da sala de jantar, fumando cachimbo e bebendo café, suspendo às vezes o trabalho moroso, olho a folhagem das laranjeiras que a noite enegrece, digo a mim
mesmo que esta pena é um objeto pesado.” (cap. 2)
Com as laranjeiras vêm a noite e o processo da escrita. Tais árvores permitem abrir mais amplamente o leque do texto. São plantas domesticadas, que não podem assumir a carga negativa das corujas, mas vêm ligadas à noite. São, pois,
elementos recorrentes no texto. Então, mesmo se eliminadas as corujas, a noite regressa sob a pressão das laranjeiras: “Desde então procuro descascar fatos, aqui sentado à mesa da sala de jantar, fumando cachimbo e bebendo café, à hora em
que os grilos cantam e a folhagem das laranjeiras se tinge de preto.” (cap. 36)
Já haviam, aliás, regressado, embora mais anônimas: “Lá fora os sapos arengavam, o vento gemia, as árvores do pomar tornavam-se massas negras.” (cap. 19) No pomar se encontram também as laranjeiras, mas aqui elas perdem essa autonomia, e se confundem na escuridão. Mas são as sentinelas do tempo, tão presentes quanto as corujas. São testemunhas do poder da noite, ligadas à reflexão e sobretudo ao processo de narração. Mas é fundamentalmente o pio da coruja que pressiona Paulo Honório: “Foi aí que me surgiu a ideia esquisita de, com o auxílio de pessoas mais entendidas que eu, compor esta história. A ideia gorou, o que já declarei. Há cerca de quatro meses, porém, enquanto escrevia a certo sujeito de Minas, recusando um negócio confuso de porcos e gado zebu, ouvi um grito de coruja e sobressaltei-me.” (cap. 36)
Paulo Honório sente-se obrigado a escrever. Dias perdidos o são apenas em relação à escrita: “Anteontem e ontem, por exemplo, foram dias perdidos. Tentei debalde canalizar para termo razoável esta prosa que se derrama como a chuva da
serra, e o que me apareceu foi um grande desgosto.” (cap. 36) Paulo Honório se desligou da prática e vive apenas encerrado no espaço ficcional. Se não escreve ou se a escrita não revela a tensão necessária, foi tempo perdido.
No capítulo 19 o relato clínico do narrador-personagem Paulo Honório mais parece relato de psiquiatra. O doente está aparentemente calmo, sentado à mesa, sem movimentos. Todavia, conta que está discutindo com a mulher, morta há já bastante tempo, e que a ameaça com o punho. Paulo Honório reage contra o delírio e busca restabelecer a diferença entre o sonhado e o real, luta cuja face mais visível se encontra na surpreendente alternância dos tempos verbais, no trecho já
aqui destacado: “Lá fora os sapos arengavam, o vento gemia, as árvores do pomar tornavam-se massas negras. (...) A figura de Casimiro Lopes aparece à janela, os sapos gritam, o vento sacode as árvores, apenas visíveis na treva.” Paulo Honório
está em pleno delírio auditivo e visual. Tudo isso suscitado pela conjugação entre os ruídos exteriores e a quebra de luminosidade. As confusões entre passado e presente, realidade e delírio podem ser verificadas ao longo de todo o capítulo. Por vezes, então, o leitor se vê jogado na história passada, outras no presente do narrador. Mas o elemento mais dramático, que tangencia o processo da loucura, está nas mutações sofridas pelo corpo do narrador-personagem, quando Paulo Honório começa a exprimir com clareza a distância entre o homem físico e o homem do imaginário e a entrar na zona do ciúme. O corpo está petrificado, mas não a imaginação.
A autovalorização do corpo já vinha apontada no capítulo 3: “Começo declarando que me chamo Paulo Honório, peso oitenta e nove quilos e completei cinquenta anos pelo S. Pedro. A idade, o peso, as sobrancelhas cerradas e grisalhas,
este rosto vermelho e cabeludo têm-me rendido muita consideração. Quando me faltavam estas qualidades, a consideração era menor.” A partir do capítulo 19, porém, as deformações vão se sucedendo e Paulo Honório se transforma aos poucos num “monstro”: “Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes. Se Madalena me via assim, com certeza me achava extraordinariamente feio. Fecho os olhos, agito a cabeça para repelir a visão que me exibe essas deformidades monstruosas.” (cap. 36)
À medida que o ciúme se desenvolve, o narrador perde qualidades, levado a encontrar em si próprio as condições negativas que justifiquem o mau comportamento de Madalena. “Que mãos enormes! As palmas eram enormes,
gretadas, calosas, duras como casco de cavalo. E os dedos eram também enormes, curtos e grossos. Acariciar uma fêmea com semelhantes mãos! (...) estava medonho. Queimado. Que sobrancelhas!” (cap. 26)
As qualidades do corpo — quando havia uma convergência entre a renda material, a que se pode receber do capital, e a renda social que pode ser extraída de um corpo — vão perder-se a partir do instante em que se inicia a ruptura entre Madalena e o narrador. Agora já não se trata da conquista do capital, mas da conquista do outro. E o fetichismo do corpo se desfaz. O ciúme submete o dominador Paulo Honório. Ele, que até então soubera dominar a sua vida e sobretudo a dos outros, tropeça na sua própria existência e entra no plano da
sujeição. Sujeição a Madalena e a sua própria imaginação. Aos elementos deletérios que, pouco a pouco, decompõem a sua razão. Quando o ciúme vai se apoderando do interior de Paulo Honório, surge sempre a coruja, esta força da
zoomorfização da noite, que faz com que a ave seja o animal constantemente misturado à decomposição dos sentimentos, do corpo e da personalidade do narrador. E, como já dito, o força a escrever. A eliminação das corujas devia se traduzir por um retorno à relação normal com Madalena, e pelo fim da carga de alucinações visuais e auditivas colocadas sob a etiqueta do ciúme. E que provocam a carga do pesadelo. “Com certeza ninguém tinha bulido na fechadura nem nas telhas. Maluqueiras de sonho. Talvez as pisadas também tivessem sido abusão de sonho. Um pesadelo. Isso. Um pesadelo. Era possível que o assobio fosse grito de coruja.” (cap. 30)
Madalena, porém, se suicidou. “A voz dela me chega aos ouvidos. Não, não é aos ouvidos. Também já não a vejo com os olhos. Estou encostado à mesa, as mãos cruzadas. Os objetos fundiram-se, e não enxergo sequer a toalha branca.”
(cap 19)
O narrador — que vai desmantelando e maldizendo partes do seu corpo — reforça a visão do monstro físico em que se transformou. Sabe que se trata de uma visão. O leitor, porém, também sabe que Paulo Honório, encerrado no seu universo, dificilmente poderá distinguir ficção de realidade. Até os objetos e partes da casa se fundem ou se destacam do todo em desordem. A desvalorização do corpo do narrador-personagem traduz a dificuldade do escritor em narrar
objetivamente as suas memórias. Há um desajuste entre fatos a serem narrados e as lembranças desses fatos.
S. Bernardo, para muitos críticos, se aproxima das obras explicitamente ideológicas. Um conteúdo político estaria sempre acompanhando o autor. Tais exegetas veem, assim, no romance uma obra principalmente ideológica, cuja função precípua seria a de colaborar para a concretização dos ideais políticos que se manifestavam com exuberância na década de trinta. Graciliano tinha mesmo em vista contribuir, com a arte, para transformar a estrutura social. E é conhecido que julgava indispensável viver como um miserável para poder falar do ponto de vista desse miserável. A busca desse real é a expressão estética de S. Bernardo.
Através da arte, aproximar-se do real, com a certeza de que tal verdade jamais será atingida na sua essência. O grito de cunho social de que S. Bernardo é portador se faz dentro dessa limitação.
Se Paulo Honório, por abraçar caminhos individuais, sem se entrosar nos movimentos coletivos, foi punido, resta ao se terminar a leitura de S. Bernardo a sensação de que o homem, ser político, não pode aspirar à absoluta isenção e à racionalidade. Traz com ele um emaranhado de conflitos internos que lhe turvam necessariamente a razão.
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SÃO BERNARDO GRACILIANO RAMOS
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