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A questão do Pereira estava dormindo no cartório, esperando que o juiz de direito desse uma penada nos autos. João Nogueira disse-me isso uma tarde.
Eu então, ligando o caso do Pereira aos predicados de d. Marcela, desci no dia seguinte à cidade, resolvido a visitar o dr. Magalhães.
Encontrei-o à noitinha no salão, que servia de gabinete de trabalho, com a filha e três visitantes: João Nogueira, uma senhora de preto, alta, velha, magra, outra senhora moça, loura e bonita.
Estavam calados, em dois grupos, os homens separados das mulheres.
O dr. Magalhães é pequenino, tem um nariz grande, um pince-nez e por detrás do pince-nez uns olhinhos risonhos. Os beiços, delgados, apertam-se. Só se descolam para o dr. Magalhães falar a respeito da sua pessoa. Também quando
entra neste assunto, não para.
Naquele momento, porém, como já disse, conservavam-se todos em silêncio. D. Marcela sorria para a senhora nova e loura, que sorria também, mostrando os dentinhos brancos. Comparei as duas, e a importância da minha visita teve uma
redução de cinquenta por cento.
Larguei, pois, d. Marcela e procurei, por meios indiretos, arrancar do juiz as linhas indispensáveis ao advogado.
O dr. Magalhães passou a mão pela testa e perguntou:
— Quais são os jornais que o senhor assina? Respondi que assinava revistas de agricultura, a folha do partido, o Cruzeiro e a Gazeta. Elogiei Azevedo Gondim e ataquei o Brito.
— Um caradura, não é?
O dr. Magalhães amoitou-se. João Nogueira foi à estante de duas prateleiras, tirou um livro, voltou a sentar-se e começou a ler.
Houve no outro lado da sala um sussurro entrecortado de risinhos.
Necessitando pensar, pensei que é esquisito este costume de viverem os machos apartados das fêmeas. Quando se entendem, quase sempre são levados por motivos que se referem ao sexo. Vem daí talvez a malícia excessiva que há em torno de coisas feitas inocentemente. Dirijo-me a uma senhora, e ela se encolhe e se arrepia toda. Se não se encolhe nem se arrepia, um sujeito que está de fora jura que há safadeza no caso.
— Não tem aparecido ultimamente no cinema, hem? disse em voz alta a senhora de preto.
— Faz quinze dias, d. Glória, respondeu d. Marcela. Acho que faz quinze dias. Ó papai, quanto tempo faz que nós fomos ao cinema?
O dr. Magalhães calculou. Tirou do bolso um cigarro, dividiu-o em duas partes, transformou uma delas num cigarrinho fino, acendeu-o:
— Duas semanas.
— É isso mesmo, quinze dias.
— Não, discordou o dr. Magalhães, duas semanas. Você está equivocada.
— Duas semanas não são quinze dias? perguntou d. Marcela.
— Não. Duas semanas são catorze dias.
D. Marcela não se convenceu:
— Sempre ouvi dizer que duas semanas são quinze dias.
— Eu também tenho ouvido, confessou o dr. Magalhães. Tenho ouvido até muitas vezes. Mas é engano. Uma semana tem sete dias. Sete e sete não são catorze? E então? São catorze.
João Nogueira soltou o livro. Talvez d. Marcela contasse com o dia do cinema.
— É possível, acedeu o dr. Magalhães. Não contando, são catorze.
— Mas contando, são quinze, gritou d. Marcela.
— É bom não contar, aconselhou o dr. Magalhães.
Despertaram todos, e a lourinha fez um movimento para se levantar.
— Muito cedo, murmurou d. Marcela.
A senhora de preto continuou sentada e entrou a discorrer sobre romances. D. Marcela tinha acabado um, de aventuras. Ia ver se se lembrava do enredo. Mas enganchou-se e não acertou com os nomes das personagens. Recomeçou, tornou a enganchar-se:
— Um romance que faz gosto, d. Glória.
— Eu não gosto de literatura, disse o dr. Magalhães. Folheei algumas obras antigamente. Hoje não. Desconheço tudo isso. Sou apenas juiz, pchiu! juiz.
D. Marcela estava quase acertando com o enredo do romance de aventuras. D. Glória escutava. A loura tinha a cabecinha inclinada e as mãozinhas cruzadas, lindas mãos, linda cabeça.
— Quando julgo, anunciava o dr. Magalhães, abstraio-me, afasto os sentimentos.
— Estive comentando isso ontem à tarde com o dr. Nogueira, atalhei.
O dr. Magalhães agradeceu.
— Para proceder assim é necessário ter independência. Eu tenho independência. Que é que eles podem fazer comigo? Não preciso deles.
Ignoro a que pessoas se referia o dr. Magalhães. João Nogueira tocou-lhe no ombro e cochichou. Compreendi que se tratava do negócio do Pereira.
Levantei-me, arredei-me, para não prejudicar a integridade do juiz e para desemburrar-me um pouco. Fui à janela, acendi o cachimbo.
D. Marcela ia terminando a narração do romance. O advogado estava satisfeito. Apertei nos dentes o cachimbo e esfreguei as mãos com força:
— Ora muito bem. Que me dizem os senhores da chapa do partido? Não conheço os candidatos, mas suponho que há uns dois ou três oradores arrojados.
— O senhor acredita nisso? perguntou João Nogueira.
— Em quê?
— Eleições, deputados, senadores.
Retraí-me, indeciso, porque não tenho ideias seguras a respeito dessas coisas.
— A gente se acostuma com o que vê. E eu, desde que me entendo, vejo eleitores e urnas. Às vezes suprimem os eleitores e as urnas: bastam livros. Mas é bom um cidadão pensar que tem influência no governo, embora não tenha nenhuma. Lá na fazenda o trabalhador mais desgraçado está convencido de que, se deixar a peroba, o serviço emperra. Eu cultivo a ilusão. E todos se interessam.
João Nogueira refletiu um instante:
— O que eu acho é que os deputados e os senadores são inúteis e comem demais.
Ia responder, mas notei que o dr. Magalhães se mexia. Fiquei com a resposta nas goelas. Ele conteve-se, e estivemos um minuto nesse jogo, cada um esperando pelo outro. Observei então que a mocinha loura voltava para nós, atenta, os grandes olhos azuis.
De repente conheci que estava querendo bem à pequena. Precisamente o contrário da mulher que eu andava imaginando — mas agradava-me, com os diabos. Miudinha, fraquinha. D. Marcela era bichão. Uma peitaria, um pé de rabo, um toitiço!
Como o silêncio se prolongasse, repliquei ao Nogueira, quase me dirigindo à lourinha:
— Existem coisas inúteis que nós conservamos. Eu conservo este cachimbo, que é inútil e até me faz mal.
Enchi o cachimbo:
— Que, para ser franco, nem sei se ele é inútil. Talvez não seja. Por isso vou às eleições. O senhor com certeza não quer acabar com as leis.
O dr. Magalhães, para quem a lei escrita é como o ar, escandalizou-se:
— Oh!
— Não, tornou João Nogueira. Que essas do congresso ordinariamente não prestam. O que é bom acabar é o congresso. As leis deviam ser feitas por especialistas.
— Ah! suspirou o dr. Magalhães, aliviado. Leis ou decretos, desde que estivessem no papel, em forma, era tudo o mesmo. Cruzou as pernas, balançou a cabeça, estirou o beiço e levantou um dedo:
— O que precisamos é uma elite.
— Perfeitamente, apoiou João Nogueira, uma oligarquia.
Mas o dr. Magalhães embirrou com o nome:
— Ah! não.
— Ora essa! exclamou João Nogueira. Só podemos ter no governo uma elite de poucos indivíduos. É oligarquia.
— Mas que é que a oposição faz senão berrar nos jornais e nos meetings contra isso? perguntei.
— A oposição não sabe o que diz. Nós temos lá oligarquia? Temos uma quantidade enorme de cavadores no poder. Só os congressistas! E os ministros, os presidentes, os governadores, os secretários, os políticos do sul. Muito dente roendo o tesouro. E que súcia! Veja os nossos representantes no congresso federal. Que diz, seu Magalhães?
O dr. Magalhães não dizia nada.
— Nunca leio política. Sou apenas juiz. Estudo, com pulso os meus livros, pchiu! Acordo cedo, tomo uma xícara de café, pequena, faço a barba, vou ao banho. Depois passeio pelo quintal, volto, distraio-me com as revistas e almoço, pouco, por causa do estômago. Descanso uma hora, escrevo, consulto os mestres. Janto, dou um giro pela cidade, à noite recebo os amigos, quando aparecem, durmo.
D. Glória não se conteve:
— Obra com acerto, é preciso preservar a saúde.
João Nogueira deu ao rosto uma expressão safada:
— Sem dúvida, é preciso preservá-la. Mas, como íamos dizendo, isto nunca foi oligarquia. Há gente demais.
— Pois se, havendo tanta, a oposição grita, imagine se o número fosse menor. Aí é que a gritaria não findava.
— Por quê?
— Porque muitos dos que estão em cima estariam embaixo, o descontentamento seria maior.
Como o advogado se aproximasse da janela, soprei-lhe ao ouvido:
— Ele prometeu o despacho?
João Nogueira afirmou com um gesto. Despedi-me:
— Não concordo com o senhor não, dr. Nogueira. A república vai bem. Só a justiça que temos... Reflita.
— Eu por mim sou apenas juiz, disse o dr. Magalhães. Estudo, consulto os bons autores...
Demorei-me até que ele terminasse, despedi-me pela segunda vez e saí.
Percorri a cidade, bestando, impressionado com os olhos da mocinha loura e esperando um acaso que me fizesse saber o nome dela. O acaso não veio, e decidi procurar João Nogueira, informar-me do nome, posição, família, as particularidades necessárias a quem pretende dar uma cabeçada séria. Às dez horas fui à redação do Cruzeiro, mas só encontrei Arquimedes, compondo. Estive no bilhar do Sousa. Não havia fregueses; apenas um, meio golado.
— O dr. Nogueira deve estar em casa da Ernestina.
Eu não sabia onde era a casa da Ernestina. Cerca de meia-noite descobri o advogado no hotel, discutindo poesia com Azevedo Gondim. Escutei uma hora, desejoso de instruir-me. Não me instruí.
— Dr. Nogueira, faz obséquio? É um instante, Gondim.
Mas tive acanhamento de tocar naquele assunto delicado, receei tornar-me ridículo, imaginei que podia o Nogueira andar também arrastando a asa para a lourinha e, sentindo uma espécie de despeito, pedi informações minuciosas sobre o processo do Pereira.

SÃO BERNARDO GRACILIANO RAMOSOnde histórias criam vida. Descubra agora