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Uma tarde subi à torre da igreja e fui ver Marciano procurar corujas.
Algumas se haviam alojado no forro, e à noite era cada pio de rebentar os ouvidos da gente. Eu desejava assistir à extinção daquelas aves amaldiçoadas.
Lá de cima escutava o barulho que Marciano, invisível, fazia. E, pelas quatro janelinhas abertas aos quatro cantos do céu, contemplava a paisagem. Por uma delas via embaixo um pedaço do escritório, uma banca e, sentada à banca, minha
mulher escrevendo. Com um ligeiro desvio de olhos, afastava a cena familiar e corriqueira, divisava o oitão da casa, portas, janelas, a cama de d. Glória, um canto da sala de jantar. Levantava a cabeça — e o horizonte compunha-se de telhas,
argamassa, lambrequins. Mais para cima, campos, serra, nuvens.
O capim-gordura tinha virado grama, e os bois que pastavam nele eram como brinquedos de celuloide. O algodoal galgava colinas, descia, tornava a mostrar-se mais longe, desbotado. Numa clareira da mata escura, quase negra, desmaiavam na sombra figurinhas de lenhadores.
Uma coruja gritava. E Marciano surgia de esconderijos cheios de treva, o pixaim branco de teias de aranha:
— Mais uma. É um corujão da peste, seu Paulo.
Eu fungava:
— Em que estará pensando aquela burra? Escrevendo. Que estupidez!
Rosa do Marciano atravessava o riacho. Erguia as saias até a cintura. Depois que passava o lugar mais fundo, ia baixando as saias. Alcançava a margem, ficava um instante de pernas abertas, escorrendo água, e saía torcendo-se, com um remeleixo de bunda que era mesmo uma tentação.
A distância arredondava e o sol dourava cocurutos de montes. Pareciam extraordinárias cabeças de santos.
— Se aquela mosca-morta prestasse e tivesse juízo, estaria aqui aproveitando esta catervagem de belezas.
Ali pelos cafus desci as escadas, bastante satisfeito. Apesar de ser um indivíduo medianamente impressionável, convenci-me de que este mundo não é mau. Quinze metros acima do solo, experimentamos a vaga sensação de ter crescido quinze metros. E quando, assim agigantados, vemos rebanhos numerosos a nossos pés, plantações estirando-se por terras largas, tudo nosso, e avistamos a fumaça que se eleva de casas nossas, onde vive gente que nos teme, respeita e talvez até nos ame, porque depende de nós, uma grande serenidade nos envolve. Sentimo-nos bons, sentimo-nos fortes. E se há ali perto inimigos morrendo, sejam embora inimigos de pouca monta que um moleque devasta a cacete, a convicção que temos da nossa fortaleza torna-se estável e aumenta. Diante disto, uma boneca traçando linhas invisíveis num papel apenas visível merece pequena consideração. Desci, pois, as escadas em paz com Deus e com os homens, e esperava que aqueles pios infames me deixassem enfim tranquilo.
Matutando, penetrei no jardim e encaminhei-me ao pomar, fazendo tenção de ver se a poda estava em regra.
Defronte do escritório descobri no chão uma folha de prosa, com certeza trazida pelo vento. Apanhei-a e corri a vista, sem interesse, pela bonita letra redonda de Madalena. Francamente, não entendi. Encontrei diversas palavras
desconhecidas, outras conhecidas de vista, e a disposição delas, terrivelmente atrapalhada, muito me dificultava a compreensão. Talvez aquilo fosse bem feito, pois minha mulher sabia gramática por baixo da água e era fecunda em riscos e entrelinhas, mas estavam riscados períodos certos, e em vão tentei justificar as emendas.
— Ocultar com artifícios o que deve ser evidente!
Passeando entre as laranjeiras, esqueci a poda, reli o papel e agadanhei ideias indefinidas que se baralharam, mas que me trouxeram um arrepio. Diabo! Aquilo era trecho de carta, e de carta a homem. Não estava lá o nome do destinatário, faltava o princípio, mas era carta a homem, sem dúvida.
Li a folha pela terceira vez, atordoado, detendo-me nas expressões claras e procurando adivinhar a significação dos termos obscuros.
— Está aqui a prova, balbuciei assombrado. A quem serão dirigidas estas porcarias?
As suspeitas voaram para cima de João Nogueira, do dr. Magalhães, de Azevedo Gondim, do Silveira da escola normal. Reli a carta um pelotão de vezes, e enquanto lia, praguejava como um condenado, e as fontes me latejavam.
Afinal a noite caiu, não enxerguei mais as letras.
Sim senhor! Carta a homem!
Estive um tempão caminhando debaixo das fruteiras.
— Eu sou algum Marciano, bando de filhos das putas?
E voltei furioso, decidido a acabar depressa com aquela infelicidade. Zumbiam-me os ouvidos, dançavam-me listras vermelhas diante dos olhos.
Ia tão cego que bati com as ventas em Madalena, que saía da igreja.
— Meia-volta, gritei segurando-lhe um braço. Temos negócio.
— Ainda? perguntou Madalena.
E deixou-se levar para a escuridão da sacristia.
Acendi uma vela e, encostando-me à mesa carregada de santos, sobre o estrado onde padre Silvestre se paramenta em dias de missa:
— Que estava fazendo aqui? Rezando? É capaz de dizer que estava rezando.
— Ainda? repetiu Madalena.
Esperei que ela me sacudisse desaforos, mas enganei-me: pôs-se a observar-me como se me quisesse comer com os olhos muito abertos. Ferviam dentro de mim violências desmedidas. As minhas mãos tremiam, agitavam-se em direção a Madalena. Apertei-as para conter os movimentos e, com os queixos contraídos:
— A senhora escreveu uma carta.
O vento frio da serra entrava pela janela, mordia-me as orelhas, e eu sentia calor. A porta gemia, de quando em quando dava no batente pancadas coléricas, depois continuava a gemer. Aquilo me irritava, mas não me veio a ideia de fechá-la. Madalena estava como se não ouvisse nada. E eu, dirigindo-me a ela e a uma litografia pendurada à parede:
— Cuidam que isto vai ficar assim?
O pequeno mais velho do Marciano entrou nas pontas dos pés. Sem me voltar para ele, bradei:
— Vai-te embora.
O menino aproximou-se da janela.
— Vai-te embora, berrei de novo.
Provavelmente o meu aspecto lhe causou estranheza. Balbuciou:
— Fechar a igreja, seu Paulo.
Percebi que os meus modos eram desarrazoados e respondi com simulada brandura:
— Perfeitamente. Volta mais tarde, ainda é cedo.
Nove horas no relógio da sacristia.
O nordeste começou a soprar, e a porta bateu com fúria. Mergulhei os dedos nos cabelos.
— Que estás fazendo, peste?
O cabrito fugiu.
Nem sei quanto tempo estive ali, em pé. A minha raiva se transformava em angústia, a angústia se transformava em cansaço.
— Para quem era a carta?
E olhava alternadamente Madalena e os santos do oratório. Os santos não sabiam, Madalena não quis responder.
O que me espantava era a tranquilidade que havia no rosto dela. Eu tinha chegado fervendo, projetando matá-la. Podia viver com a autora de semelhante maroteira?
À medida, porém, que as horas se passavam, sentia-me cair num estado de perplexidade e covardia.
As imagens de gesso não se importavam com a minha aflição. E Madalena tinha quase a impassibilidade delas. Por que estaria assim tão calma?
Afirmei a mim mesmo que matá-la era ação justa. Para que deixar viva mulher tão cheia de culpa? Quando ela morresse, eu lhe perdoaria os defeitos.
As minhas mãos contraíam-se, moviam-se para ela, mas agora as contrações eram fracas e espaçadas.
— Fale, exclamei com voz mal segura.
— Para quê?
— Há uma carta. Eu preciso saber, compreende?
Meti a mão no bolso e apresentei-lhe a folha, já amarrotada e suja. Madalena estendeu-a sobre a mesa, examinou-a, afastou-a para um lado.
— Então?
— Já li.
A vela acabou-se. Acendi outra e fiquei com o fósforo entre os dedos até queimar-me.
— Diga alguma coisa.
Pareceu-me que havia ali um equívoco e que, se Madalena quisesse, tudo se esclareceria. O coração dava-me coices desesperados, desejei doidamente convencer-me da inocência dela.
— Para quê? murmurou Madalena. Há três anos vivemos uma vida horrível. Quando procuramos entender-nos, já temos a certeza de que acabamos brigando.
— Mas a carta?
Madalena apanhou o papel, dobrou-o e entregou-mo:
— O resto está no escritório, na minha banca. Provavelmente esta folha voou para o jardim quando eu escrevi.
— A quem?
— Você verá. Está em cima da banca. Não é caso para barulho. Você verá.
— Bem.
Respirei. Que fadiga!
— Você me perdoa os desgostos que lhe dei, Paulo?
— Julgo que tive as minhas razões.
— Não se trata disso. Perdoa?
Rosnei um monossílabo.
— O que estragou tudo foi esse ciúme, Paulo.
Palavras de arrependimento vieram-me à boca. Engoli-as, forçado por um orgulho estúpido. Muitas vezes por falta de um grito se perde uma boiada.
— Seja amigo de minha tia, Paulo. Quando desaparecer essa quizília, você reconhecerá que ela é boa pessoa.
Eu era tão bruto com a pobre da velha!
— Consequência desse mal-entendido. Ela também tem culpa. Um bocado ranzinza.
— Seu Ribeiro é trabalhador e honesto, você não acha?
— Acho. Antigamente deu cartas e jogou de mão. Hoje é refugo. Um sujeito decente, coitado.
— E o Padilha...
— Ah! não! Um enredeiro. Nem está direito você torcer por ele. Safadíssimo.
— Paciência! O Marciano... Você é rigoroso com o Marciano, Paulo.
— Ora essa! exclamei enfadado. Que rosário!
— Não se zangue, disse Madalena sem erguer a voz.
— O que eu queria...
Sentei-me num banco.
O que eu queria era que ela me livrasse daquelas dúvidas.
— Que é que você queria? perguntou Madalena sentando-se também.
— Sei lá!
E encolhi-me, as mãos pesadas sobre os joelhos. Madalena, com ar meio sério, meio de brincadeira:
— Se eu morrer de repente...
— Que história é essa, mulher? Lembrança fora de propósito.
— Por que não? Quem sabe qual há de ser o meu fim? Se eu morrer de repente...
— Acabe com isso, criatura. Para que falar nessas coisas?
— Ofereça os meus vestidos à família de mestre Caetano e à Rosa. Distribua os livros com seu Ribeiro, o Padilha e o Gondim.
Levantei-me, impaciente:
— Que conversa sem jeito!
E agarrei-me a um assunto agradável para afugentar aquelas ideias tristes:
— Estou com vontade de viajar.
Sentei-me novamente, animei-me, acendi um cigarro:
— Depois da safra. Deixo seu Ribeiro tomando conta da fazenda. Vamos à Bahia. Ou ao Rio. O Rio é melhor. Passamos uns meses descansando, você cura a macacoa do estômago, engorda e se distrai. É bom a gente arejar. A vida inteira neste buraco, trabalhando como negro! E damos um salto a São Paulo. Valeu?
Madalena, olhando a luz, que tremia, agitando sombras nas paredes, saiu-se com esta:
— Hoje pela manhã já havia na mata alguns paus-d’arco com flores. Contei uns quatro. Daqui a uma semana estão lindos. É pena que as flores caiam tão depressa.
— Efetivamente, resmunguei procurando relacionar o Rio e São Paulo com os paus-d’arco. E que me diz da viagem?
Madalena tinha os olhos presos na vela:
— Sim, estive rezando. Rezando, propriamente, não, que rezar não sei. Falta de tempo.
Meu Deus! como andava aquela cabeça! Era a resposta à minha primeira pergunta.
— Escrevia tanto que os dedos adormeciam. Letras miudinhas, para economizar papel. Nas vésperas dos exames dormia duas, três horas por noite. Não tinha proteção, compreende? Além de tudo a nossa casa na Levada era úmida e fria. No inverno levava os livros para a cozinha. Podia visitar igrejas? Estudar sempre, sempre, com medo das reprovações...
Estava perturbada, via-se perfeitamente que estava perturbada. Largou outras incoerências:
— As casas dos moradores, lá embaixo, também são úmidas e frias. É uma tristeza. Estive rezando por eles. Por vocês todos. Rezando... Estive falando só.
O relógio da sacristia tocou meia-noite.
— Meu Deus! Já tão tarde! Aqui, tagarelando...
Levantou-se e pôs-me a mão no ombro:
— Adeus, Paulo. Vou descansar.
Voltou-se da porta:
— Esqueça as raivas, Paulo.
Por que não acompanhei a pobrezinha? Nem sei. Porque guardava um resto de dignidade besta. Porque ela não me convidou. Porque me invadiu uma grande preguiça.
Fiquei remoendo as palavras desconexas e os modos esquisitos de Madalena. Depois pensei na carta que ela havia deixado no escritório, incompleta.
Para quem seria? Lá vinha novamente o ciúme. Aquilo ainda causaria infelicidades sem remédio.
Pouco a pouco me fui amadornando, até cair num sono embrulhado e penoso. Creio que sonhei com rios cheios e atoleiros.
Quando dei acordo de mim, a vela estava apagada e o luar, que eu não tinha visto nascer, entrava pela janela. A porta continuava a ranger, o nordeste atirava para dentro da sacristia folhas secas, que farfalhavam no chão de ladrilhos brancos e pretos. O relógio tinha parado, mas julgo que dormi horas. Galos cantaram, a lua deitou-se, o vento se cansou de gritar à toa e a luz da madrugada veio brincar com as imagens do oratório.
Ergui-me, o espinhaço doído da posição incômoda. Estirei os braços. Moído, como se tivesse levado uma surra.
Saí, dirigi-me ao curral, bebi um copo de leite. Conversei um instante com Marciano sobre as corujas. Em seguida fui passear no pátio, esperando que o dia clareasse de todo.
Realmente a mata, enfeitada de paus-d’arco, estava uma beleza.
Três anos de casado. Fazia exatamente um ano que tinha começado o diabo do ciúme.
A serraria apitou; as suíças de seu Ribeiro surgiram a uma janela; Maria das Dores abriu as portas; Casimiro Lopes apareceu com uma braçada de hortaliças.
Desci ao açude. Derreado, as cadeiras doendo. Que noite! Despi-me entre as bananeiras, meti-me na água, mergulhei e nadei.
Quando cheguei a casa, o sol já estava alto. O espinhaço ainda me doía. Que noite!
Subindo os degraus da calçada, ouvi gritos horríveis lá dentro.
— Que diabo de chamego é este?
Entrei apressado, atravessei o corredor do lado direito e no meu quarto dei com algumas pessoas soltando exclamações. Arredei-as e estaquei: Madalena estava estirada na cama, branca, de olhos vidrados, espuma nos cantos da boca.
Aproximei-me, tomei-lhe as mãos, duras e frias, toquei-lhe o coração, parado. Parado.
No soalho havia manchas de líquido e cacos de vidro.
D. Glória, caída no tapete, soluçava, estrebuchando. A ama, com a criança nos braços, choramigava. Maria das Dores gemia.
Comecei a friccionar as mãos de Madalena, tentando reanimá-la. E balbuciava:
— A Deus nada é impossível.
Era uma frase ouvida no campo, dias antes, e que me voltava, oferecendo-me esperança absurda.
Pus um espelho diante da boca de Madalena, levantei-lhe as pálpebras. E repetia maquinalmente:
— A Deus nada é impossível.
— Que desastre, senhor Paulo Honório, que irreparável desastre! murmurou seu Ribeiro perto de mim.
E Padilha, encolhido por detrás dele:
— Num momento como este a minha obrigação era vir.
— Agradecido, muito agradecido.
E encaminhei-me ao escritório, levado pelo hábito, murmurando sempre:
— A Deus nada é impossível.
Sobre a banca de Madalena estava o envelope de que ela me havia falado. Abri-o. Era uma carta extensa em que se despedia de mim. Li-a, saltando pedaços e naturalmente compreendendo pela metade, porque topava a cada passo aqueles palavrões que a minha ignorância evita. Faltava uma página: exatamente a que eu trazia na carteira, entre faturas de cimento e orações contra maleitas que a Rosa anos atrás me havia oferecido.

SÃO BERNARDO GRACILIANO RAMOSOnde histórias criam vida. Descubra agora