36

916 11 4
                                    

Faz dois anos que Madalena morreu, dois anos difíceis. E quando os amigos deixaram de vir discutir política, isto se tornou insuportável.
Foi aí que me surgiu a ideia esquisita de, com o auxílio de pessoas mais entendidas que eu, compor esta história. A ideia gorou, o que já declarei. Há cerca de quatro meses, porém, enquanto escrevia a certo sujeito de Minas, recusando um
negócio confuso de porcos e gado zebu, ouvi um grito de coruja e sobressaltei-me.
Era necessário mandar no dia seguinte Marciano ao forro da igreja.
De repente voltou-me a ideia de construir o livro. Assinei a carta ao homem dos porcos e, depois de vacilar um instante, porque nem sabia começar a tarefa, redigi um capítulo.
Desde então procuro descascar fatos, aqui sentado à mesa da sala de jantar, fumando cachimbo e bebendo café, à hora em que os grilos cantam e a folhagem das laranjeiras se tinge de preto.
Às vezes entro pela noite, passo tempo sem fim acordando lembranças. Outras vezes não me ajeito com esta ocupação nova.
Anteontem e ontem, por exemplo, foram dias perdidos. Tentei debalde canalizar para termo razoável esta prosa que se derrama como a chuva da serra, e o que me apareceu foi um grande desgosto. Desgosto e a vaga compreensão de muitas coisas que sinto.
Sou um homem arrasado. Doença? Não. Gozo perfeita saúde. Quando o Costa Brito, por causa de duzentos mil-réis que me queria abafar, vomitou os dois artigos, chamou-me doente, aludindo a crimes que me imputam. O Brito da Gazeta era uma besta. Até hoje, graças a Deus, nunca um médico me entrou em casa. Não tenho doença nenhuma.
O que estou é velho. Cinquenta anos pelo S. Pedro. Cinquenta anos perdidos, cinquenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casca espessa e vem ferir cá dentro a sensibilidade embotada.
Cinquenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para quê! Comer e dormir como um porco! Como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar comida para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo?
Sol, chuva, noites de insônia, cálculos, combinações, violências, perigos — e nem sequer me resta a ilusão de ter realizado obra proveitosa. O jardim, a horta, o pomar — abandonados; os marrecos-de-pequim — mortos; o algodão, a mamona — secando. E as cercas dos vizinhos, inimigos ferozes, avançam.
Está visto que, cessando esta crise, a propriedade se poderia reconstituir e voltar a ser o que era. A gente do eito se esfalfaria de sol a sol, alimentada com farinha de mandioca e barbatanas de bacalhau; caminhões rodariam novamente,
conduzindo mercadorias para a estrada de ferro; a fazenda se encheria outra vez de movimento e rumor.
Mas para quê? Para quê? não me dirão? Nesse movimento e nesse rumor haveria muito choro e haveria muita praga. As criancinhas, nos casebres úmidos e frios, inchariam roídas pela verminose. E Madalena não estaria aqui para mandar-
lhes remédio e leite. Os homens e as mulheres seriam animais tristes.
Bichos. As criaturas que me serviram durante anos eram bichos. Havia bichos domésticos, como o Padilha, bichos do mato, como Casimiro Lopes, e muitos bichos para o serviço do campo, bois mansos. Os currais que se escoram uns aos outros, lá embaixo, tinham lâmpadas elétricas. E os bezerrinhos mais taludos soletravam a cartilha e aprendiam de cor os mandamentos da lei de Deus.
Bichos. Alguns mudaram de espécie e estão no exército, volvendo à esquerda, volvendo à direita, fazendo sentinela. Outros buscaram pastos diferentes.
Se eu povoasse os currais, teria boas safras, depositaria dinheiro nos bancos, compraria mais terra e construiria novos currais. Para quê? Nada disso me traria satisfação.
Coloquei-me acima da minha classe, creio que me elevei bastante. Como lhes disse, fui guia de cego, vendedor de doce e trabalhador alugado. Estou convencido de que nenhum desses ofícios me daria os recursos intelectuais necessários para engendrar esta narrativa. Magra, de acordo, mas em momentos de otimismo suponho que há nela pedaços melhores que a literatura do Gondim. Sou, pois, superior a mestre Caetano e a outros semelhantes. Considerando, porém, que os enfeites do meu espírito se reduzem a farrapos de conhecimentos apanhados sem escolha e mal cosidos, devo confessar que a superioridade que me envaidece é bem mesquinha.
Além disso estou certo de que a escrituração mercantil, os manuais de agricultura e pecuária, que forneceram a essência da minha instrução, não me tornaram melhor que o que eu era quando arrastava a peroba. Pelo menos naquele tempo não sonhava ser o explorador feroz em que me transformei.
Quanto às vantagens restantes — casas, terras, móveis, semoventes, consideração de políticos, etc. — é preciso convir em que tudo está fora de mim.
Julgo que me desnorteei numa errada.
Se houvesse continuado a arear o tacho de cobre da velha Margarida, eu e ela teríamos uma existência quieta. Falaríamos pouco, pensaríamos pouco, e à noite, na esteira, depois do café com rapadura, rezaríamos rezas africanas, na graça de Deus.
Se não tivesse ferido o João Fagundes, se tivesse casado com a Germana, possuiria meia dúzia de cavalos, um pequeno cercado de capim, encerados, cangalhas, seria um bom almocreve. Teria crédito para comprar cem mil-réis de fazenda nas lojas da cidade e pelas quatro festas do ano a mulher e os meninos vestiriam roupa nova. Os meus desejos percorreriam uma órbita acanhada. Não me atormentariam preocupações excessivas, não ofenderia ninguém. E, em manhãs de inverno, tangendo os cargueiros, dando estalos com o buranhém, de alpercatas, chapéu de ouricuri, alguns níqueis na capanga, beberia um gole de cachaça para espantar o frio e cantaria por estes caminhos, alegre como um desgraçado.
Hoje não canto nem rio. Se me vejo ao espelho, a dureza da boca e a dureza dos olhos me descontentam.
Penso no povoado onde seu Ribeiro morou, há meio século. Seu Ribeiro acumulava, sem dúvida, mas não acumulava para ele. Tinha uma casa grande, sempre cheia, o jerimum caboclo apodrecia na roça — e por aquelas beiradas ninguém tinha fome. Imagino-me vivendo no tempo da monarquia, à sombra de seu Ribeiro. Não sei ler, não conheço iluminação elétrica nem telefone. Para me exprimir recorro a muita perífrase e muita gesticulação. Tenho, como todo o mundo, uma candeia de azeite, que não serve para nada, porque à noite a gente
dorme. Podem rebentar centenas de revoluções. Não receberei notícia delas. Provavelmente sou um sujeito feliz.
Com um estremecimento, largo essa felicidade que não é minha e encontro-me aqui em S. Bernardo, escrevendo.
As janelas estão fechadas. Meia-noite. Nenhum rumor na casa deserta.
Levanto-me, procuro uma vela, que a luz vai apagar-se. Não tenho sono. Deitar-me, rolar no colchão até a madrugada, é uma tortura. Prefiro ficar sentado, concluindo isto. Amanhã não terei com que me entreter.
Ponho a vela no castiçal, risco um fósforo e acendo-a. Sinto um arrepio. A lembrança de Madalena persegue-me. Diligencio afastá-la e caminho em redor da mesa. Aperto as mãos de tal forma que me firo com a unhas, e quando caio em mim estou mordendo os beiços a ponto de tirar sangue.
De longe em longe sento-me fatigado e escrevo uma linha. Digo em voz baixa:
— Estraguei a minha vida, estraguei-a estupidamente.
A agitação diminui.
— Estraguei a minha vida estupidamente.
Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível recomeçarmos... Para que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos, aconteceria exatamente o que aconteceu. Não consigo modificar-me, é o que mais me aflige.
A molecoreba de mestre Caetano arrasta-se por aí, lambuzada, faminta. A Rosa, com a barriga quebrada de tanto parir, trabalha em casa, trabalha no campo e trabalha na cama. O marido é cada vez mais molambo. E os moradores que me restam são uns cambembes como ele.
Para ser franco, declaro que esses infelizes não me inspiram simpatia. Lastimo a situação em que se acham, reconheço ter contribuído para isso, mas não vou além. Estamos tão separados! A princípio estávamos juntos, mas esta desgraçada profissão nos distanciou.
Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo.
Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins.
E a desconfiança terrível que me aponta inimigos em toda a parte!
A desconfiança é também consequência da profissão.
Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes.
Se Madalena me via assim, com certeza me achava extraordinariamente feio.
Fecho os olhos, agito a cabeça para repelir a visão que me exibe essas deformidades monstruosas.
A vela está quase a extinguir-se.
Julgo que delirei e sonhei com atoleiros, rios cheios e uma figura de lobisomem.
Lá fora há uma treva dos diabos, um grande silêncio. Entretanto o luar entra por uma janela fechada e o nordeste furioso espalha folhas secas no chão.
É horrível! Se aparecesse alguém... Estão todos dormindo.
Se ao menos a criança chorasse... Nem sequer tenho amizade a meu filho. Que miséria!
Casimiro Lopes está dormindo. Marciano está dormindo. Patifes!
E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos.

SÃO BERNARDO GRACILIANO RAMOSOnde histórias criam vida. Descubra agora