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Pois, apesar das precauções que tomamos, do asbesto que usamos para amortecer os atritos, veio nova desinteligência. Depois vieram muitas.


Pela manhã Madalena trabalhava no escritório, mas à tarde saía a passear, percorria as casas dos moradores. Garotos empalamados e beiçudos agarravam-se às saias dela.


Foi à escola, criticou o método de ensino do Padilha e entrou a amolar-me reclamando um globo, mapas, outros arreios que não menciono porque não quero tomar o incômodo de examinar ali o arquivo. Um dia, distraidamente, ordenei a


encomenda. Quando a fatura chegou, tremi. Um buraco: seis contos de réis. Seis contos de folhetos, cartões e pedacinhos de tábua para os filhos dos trabalhadores. Calculem. Uma dinheirama tão grande gasta por um homem que aprendeu leitura na cadeia, em carta de ABC, em almanaques, numa bíblia de capa preta, dos bodes. Mas contive-me. Contive-me porque tinha feito tenção de evitar dissidências com minha mulher e porque imaginei mostrar aquelas complicações ao


governador quando ele aparecesse aqui. Em todo o caso era despesa supérflua.


Assinei a duplicata, pus o chapéu e saí. Ao passar pelo estábulo, notei que os animais não tinham ração.


- Isto vai mal.


E gritei:


- Marciano!


Gritei em vão. Desci a ladeira, com raiva. Lá embaixo, à porta da escola, descobri Marciano escanchado num tamborete, taramelando com o Padilha.


- Já para as suas obrigações, safado.


- Acabei o serviço, seu Paulo, gaguejou Marciano perfilando-se.


- Acabou nada!


- Acabei, senhor sim. Juro por esta luz que nos alumia.


- Mentiroso. Os animais estão morrendo de fome, roendo a madeira.


Marciano teve um rompante:


- Ainda agorinha os cochos estavam cheios. Nunca vi gado comer tanto. E ninguém aguenta mais viver nesta terra. Não se descansa.


Era verdade, mas nenhum morador me havia ainda falado de semelhante modo.


- Você está se fazendo besta, seu corno?


Mandei-lhe o braço ao pé do ouvido e derrubei-o. Levantou-se zonzo, bambeando, recebeu mais uns cinco trompaços e levou outras tantas quedas. A última deixou-o esperneando na poeira. Enfim ergueu-se e saiu de cabeça baixa, trocando os passos e limpando com a manga o nariz, que escorria sangue. Estive uns minutos soprando. Depois voltei-me para o Padilha:


- O culpado é você.


- Eu?


- Sim, você, que anda enchendo de folhas as ventas daquele sem-vergonha.


Padilha defendeu-se, pálido:
- Não ando enchendo nada não, seu Paulo. É injustiça. Ele veio de enxerido, acredite. Não chamei, até disse: "Marciano, é melhor que você vá dar comida aos bichos." Não escutou e ficou aí, lesando. Eu estava enjoado, por Deus do céu, que não gosto da cara desse moleque.


Ia pregar-lhe uma descompostura, mas avistei Madalena, que, no paredão do açude, se virava para as ruínas do Marciano. Fui ao encontro dela, resmungando:


- Insolente! dá-se o pé, e quer tomar a mão.


Mas a cólera tinha desaparecido. O que agora me importunava eram as caixas com o material pedagógico inútil nestes cafundós. Para que aquilo? O governador se contentaria se a escola produzisse alguns indivíduos capazes de tirar o título de eleitor.


- Tomando fresca, hem? perguntei a Madalena, que tinha a vista presa no telhado escuro do estábulo.


Não deu resposta. Pus-me a olhar o bebedouro dos animais, o leito vazio do riacho além do sangradouro do açude e, longe, na encosta da serra, a pedreira, que era apenas uma nódoa alvacenta. A mata ia enegrecendo. Um vento frio começou a soprar. As últimas cargas de algodão chegaram ao descaroçador. Houve um apito demorado e os trabalhadores largaram o serviço. Consultei o relógio: seis horas.


- É horrível! bradou Madalena.


- Como?


- Horrível! insistiu.


- Que é?


- O seu procedimento. Que barbaridade! Despropósito.


- Que diabo de história...


Estaria tresvariando? Não: estava bem acordada, com os beiços contraídos, uma ruga entre as sobrancelhas.


- Não entendo. Explique-se.


Indignada, a voz trêmula:


- Como tem coragem de espancar uma criatura daquela forma?


- Ah! sim! por causa do Marciano. Pensei que fosse coisa séria. Assustou-me.


Naquele momento não supus que um caso tão insignificante pudesse provocar desavença entre pessoas razoáveis.


- Bater assim num homem! Que horror!


Julguei que ela se aborrecesse por outro motivo, pois aquilo era uma frivolidade.


- Ninharia, filha. Está você aí se afogando em pouca água. Essa gente faz o que se manda, mas não vai sem pancada. E Marciano não é propriamente um homem.


- Por quê?


- Eu sei lá! Foi vontade de Deus. É um molambo.


- Claro. Você vive a humilhá-lo.


- Protesto! exclamei alterando-me. Quando o conheci, já ele era molambo.
- Provavelmente porque sempre foi tratado a pontapés.


- Qual nada! É molambo porque nasceu molambo.


Madalena calou-se, deu as costas e começou a subir a ladeira. Acompanhei-a, embuchado. De repente voltou-se e, com voz rouca, uma chama nos olhos azuis, que estavam quase pretos:


- Mas é uma crueldade. Para que fez aquilo?


Perdi os estribos:


- Fiz aquilo porque achei que devia fazer aquilo. E não estou habituado a justificar-me, está ouvindo? Era o que faltava. Grande acontecimento, três ou quatro muxicões num cabra. Que diabo tem você com o Marciano para estar tão parida por ele?

SÃO BERNARDO GRACILIANO RAMOSOnde histórias criam vida. Descubra agora