Comecei a sentir ciúmes. O meu primeiro desejo foi agarrar o Padilha pelas orelhas e deitá-lo fora, a pontapés. Mas conservei-o para vingar-me.
Arredei-o de casa, a bem dizer prendi-o na escola. Lá vivia, lá dormia, lá recebia alimento, boia fria, num tabuleiro.
Estive quatro meses sem lhe pagar o ordenado. E quando o vi sucumbido, magro, com o colarinho sujo e o cabelo crescido, pilheriei:
— Tenha paciência. Logo você se desforra. Você é um apóstolo. Continue a escrever os contozinhos sobre o proletário.
O infeliz defendia-se. Com as humilhações continuadas, limitava-se por fim a engolir em seco. Um dia chorou, pediu-me soluçando que lhe arranjasse uma colocação no fisco estadual.
— Impossível, Padilha. Espere o soviete. Você se colocará com facilidade na guarda vermelha. Quando isso acontecer, não se lembre de mim não, Padilha, seja camarada.
Na casa-grande, que Tubarão e Casimiro Lopes guardavam, a vida era uma tristeza, um aborrecimento. D. Glória passava as tardes debaixo das laranjeiras, empalhando-se com brochuras e folhetins. Madalena bordava e tinha o rosto coberto de sombras.
Às vezes as sombras se adelgaçavam. E findo o trabalho, tudo convidava a gente às conversas moles, aos cochilos, ao embrutecimento.
Uma aragem corria. Vinham-me arrepios bons, desejo de espreguiçar-me. Via o monte, que a fita vermelha da estrada contorna, a mata, o algodoal, a água parada do açude.
Madalena soltava o bordado e enfiava os olhos na paisagem. Os olhos cresciam. Lindos olhos.
Sem nos mexermos, sentíamos que nos juntávamos, cautelosamente, cada um receando magoar o outro. Sorrisos constrangidos e gestos vagos.
Eu narrava o sertão. Madalena contava fatos da escola normal. Depois vinha o arrefecimento. Infalível. A escola normal! Na opinião do Silveira, as normalistas pintam o bode, e o Silveira conhece instrução pública nas pontas dos dedos, até compõe regulamentos. As moças aprendem muito na escola normal.
Não gosto de mulheres sabidas. Chamam-se intelectuais e são horríveis. Tenho visto algumas que recitam versos no teatro, fazem conferências e conduzem um marido ou coisa que o valha. Falam bonito no palco, mas intimamente, com as cortinas cerradas, dizem:
— Me auxilia, meu bem.
Nunca me disseram isso, mas disseram ao Nogueira. Imagino. Aparecem nas cidades do interior, sorrindo, vendendo folhetos, discursos, etc. Provavelmente empestaram as capitais. Horríveis.
Madalena, propriamente, não era uma intelectual. Mas descuidava-se da religião, lia os telegramas estrangeiros.
E eu me retraía, murchava.
Requebrando-se para o Nogueira, ao pé da janela, sorrindo! Sorrindo exatamente como as outras, as que fazem conferências. Perigo. Quem se remexer para João Nogueira estrepa-se. Bom advogado, negócios direitos, sim sim, não não; mas no gênero mulher é uma rede, não deita água a pinto. E aquela conversa teria sido a primeira? Antes da minha bruta cabeçada, eles se entendiam. Talvez namorassem. Quando, em casa do dr. Magalhães, eu tinha encontrado Madalena, João Nogueira estava lá. Tapado, o dr. Magalhães, tapadíssimo. Escutá-lo é pior que ouvir serrar madeira. “Sou juiz, entende? Juiz. Levanto-me pela manhã.” O Nogueira, de olho duro, gramando aquilo! Interesse. Começara a falar em política, Madalena levantara a cabeça, curiosa. E, com dois anos de casada, num vão de janela, desmanchava-se toda para ele.
Erguia-me, insultava-a mentalmente:
— Perua!
Até com o Padilha! Como diabo tinha ela coragem de se chegar a uma lazeira como o Padilha? A questão social.
— Está aqui para a questão social. O que há é sem-vergonheza.
Depois a colaboração no jornal do Gondim. Continuava a colaborar. Pouco, mas continuava. O Gondim e ela tinham sido unha com carne. Lembram-se da tarde em que ele me deu parabéns, estupidamente? Familiaridade. E discutiam as
pernas e os peitos dela!
Eu tinha razão para confiar em semelhante mulher? Mulher intelectual.
E a minha cara devia ser terrível, porque Madalena empalidecia e dava para tremer.
Se eu soubesse... Soubesse o quê! Há lá marido que saiba nada?
Era possível que os caboclos do eito estivessem mangando de mim. Até Marciano e a Rosa comentariam o caso, na cama, de noite.
O Marciano conheceria as minhas relações com a Rosa? Não conhecia. Tive sempre o cuidado de mandá-lo à cidade, a compras, oportunamente. E talvez não quisesse conhecer. Também se podia admitir que fosse dotado de pouca penetração.
— Enfim certeza, certeza de verdade, ninguém tem.
Que diria seu Ribeiro? Que diria d. Glória?
Afastava-me, lento, ia ver o pequeno, que engatinhava pelos quartos, às quedas, abandonado. Acocorava-me e examinava-o. Era magro. Tinha os cabelos louros, como os da mãe. Olhos agateados. Os meus são escuros. Nariz chato. De ordinário as crianças têm o nariz chato.
Interrompia o exame, indeciso: não havia sinais meus; também não havia os de outro homem.
E o pequeno continuava a arrastar-se, caindo, chorando, feio como os pecados. As perninhas e os bracinhos eram finos que faziam dó. Gritava dia e noite, gritava como um condenado, e a ama vivia meio doida de sono. Às vezes ficava roxo de berrar, e receei que estivesse morrendo quando padre Silvestre lhe molhou a cabeça na pia. Com a dentição encheu-se de tumores, cobriram-no de esparadrapos: direitinho uma rês casteada. Ninguém se interessava por ele. D. Glória lia. Madalena andava pelos cantos, com as pálpebras vermelhas e suspirando. Eu dizia comigo:
— Se ela não quer bem ao filho!
E o filho chorava, chorava continuadamente. Casimiro Lopes era a única pessoa que lhe tinha amizade. Levava-o para o alpendre e lá se punha a papaguear com ele, dizendo histórias de onças, cantando para o embalar as cantigas do sertão. O menino trepava-lhe às pernas, puxava-lhe a barba, e ele cantava:
Eu nasci de sete meses,
Fui criado sem mamar.
Bebi leite de cem vacas
Na porteira do curral.
Boa alma, Casimiro Lopes. Nunca vi ninguém mais simples. Estou convencido de que não guarda lembrança do mal que pratica. Toda a gente o julga uma fera. Exagero. A ferocidade aparece nele raramente. Não compreende nada, exprime-se mal e é crédulo como um selvagem.
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SÃO BERNARDO GRACILIANO RAMOS
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