17

371 4 0
                                    

Casou-nos o padre Silvestre, na capela de S. Bernardo, diante do altar de S. Pedro.


Estávamos em fim de janeiro. Os paus-d'arco, floridos, salpicavam a mata de pontos amarelos; de manhã a serra cachimbava; o riacho, depois das últimas trovoadas, cantava grosso, bancando rio, e a cascata em que se despenha, antes de entrar no açude, enfeitava-se de espuma.


Quando viu os arames da iluminação, o telefone, os móveis, vários trastes de metal, que Maria das Dores conservava areados, brilhando, d. Glória confessou que a vida ali era suportável.


- Eu não dizia?


Ofereci-lhe um quarto no lado esquerdo da casa, por detrás do escritório, com janela para o muro da igreja, vermelho. O muro está hoje esverdeado pelas águas da chuva, mas naquele tempo era novo e cor de carne crua. Eu e Madalena


ficamos no lado direito - e da nossa varanda avistávamos o algodoal, o prado, o descaroçador com a serraria e a estrada, que se torce contornando um morro.


- Vamos começar vida nova, hem? disse Madalena alegremente.,


Desde então comecei a fazer nela algumas descobertas que me surpreenderam. Como se sabe, eu me havia contentado com o rosto e com algumas informações ligeiras.


Tive, durante uma semana, o cuidado de procurar afinar a minha sintaxe pela dela, mas não consegui evitar numerosos solecismos. Mudei de rumo. Tolice. Madalena não se incomodava com essas coisas. Imaginei-a uma boneca da escola normal. Engano. Enjoou o Padilha, que achou "uma alma baixa". (Aí eu expliquei que a alma dele não tinha importância. Exigia dos meus homens serviços: o resto não me interessava.) Enjoou o Padilha. Mas gostou de seu Ribeiro: meteu-se no escritório, folheou os livros, examinou documentos, desarmou a máquina de escrever, que estava emperrada. E dois dias depois do casamento, ainda com um


ar machucado, largou-se para o campo e rasgou a roupa nos garranchos do algodão. A hora do jantar encontrei-a no descaroçador, conversando com o maquinista.


- Ora muito bem. Isto é mulher.


Mas aconselhei-a a não expor-se:


- Esses caboclos são uns brutos. Quer trabalhar? Combino. Trabalhe com Maria das Dores. A gente da lavoura só comigo.


- A ocupação de Maria das Dores não me agrada. E eu não vim para aqui dormir.


- São entusiasmos do princípio.


- Outra coisa, continuou Madalena. A família de mestre Caetano está sofrendo privações.


- Já conhece mestre Caetano? perguntei admirado. Privações, é sempre a mesma cantiga. A verdade é que não preciso mais dele. Era melhor ir cavar a vida fora.
- Doente...


- Devia ter feito economia. São todos assim, imprevidentes. Uma doença qualquer, e é isto: adiantamentos, remédios. Vai-se o lucro todo.


- Ele já trabalhou demais. E está tão velho!


- Muito, perdeu a força. Põe a alavanca numa pedra pequena e chama os cavouqueiros para deslocá-la. Não vale os seis mil-réis que recebia. Mas não tem dúvida: mande o que for necessário. Mande meia cuia de farinha, mande uns litros de feijão. É dinheiro perdido.

SÃO BERNARDO GRACILIANO RAMOSOnde histórias criam vida. Descubra agora