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Aqui nos dias santos surgem viagens, doenças e outros pretextos para o trabalhador gazear. O domingo é perdido, o sábado também se perde, por causa da feira, a semana tem apenas cinco dias, que a Igreja ainda reduz. O resultado é a paga encolher e essa cambada viver com a barriga tinindo.
Num feriado de mentira, não tendo podido encontrar gente para tirar baronesas do açude e brocar um pedaço de capoeira, distraí-me ouvindo Padilha e Casimiro Lopes conversarem a respeito de onças.
Não se entendem. Padilha, homem da mata e franzino, fala muito e admira as ações violentas; Casimiro Lopes é coxo e tem um vocabulário mesquinho. Julga o mestre-escola uma criatura superior, porque usa livros, mas para manifestar esta opinião arregala os olhos e dá um pequeno assobio. Gagueja. No sertão passava horas calado, e quando estava satisfeito, aboiava. Quanto a palavras, meia dúzia delas. Ultimamente, ouvindo pessoas da cidade, tinha decorado alguns termos, que empregava fora de propósito e deturpados. Naquele dia, por mais que forcejasse, só conseguia dizer que as onças são bichos brabos e arteiros.
— Pintada. Dentão grande, pezão grande, cada unha! Medonha!
Padilha exigia que o outro repetisse a descrição e ia intercalando nela, por conta própria, caracteres novos. Casimiro Lopes divergia; mas, confiado na ciência de Padilha, capitulava — e ao cabo de minutos a onça estava um animal como nunca se viu.
— Ó Casimiro, você vai levar um papel ao vigário.
E escrevi a padre Silvestre agradecendo o interesse que ele tinha tomado pela viagem difícil de Margarida. Chegara dias antes e estava alojada numa casinha cercada de bananeiras.
Entreguei a carta a Casimiro Lopes, tomei o chapéu e fui fazer a minha segunda visita à preta. Desci a ladeira. Ao atravessar o paredão do açude, amedrontei uma nuvem de marrecas e jaçanãs. Com as últimas chuvas a represa aumentara muito, os bancos de baronesa estavam com vontade de entupir o
sangradouro. A levada que ia ter ao descaroçador e à serraria transbordava. Fechada a serraria, fechado o descaroçador. Dia perdido.
Encontrei Margarida sentada numa esteira, riscando os tijolos com carvões.
— Mãe Margarida, como vai a senhora?
Tentou endireitar o espinhaço emperrado e, antes de lançar-me os olhos brancos, reconheceu-me pela voz.
— Aqui gemendo e chorando, meu filho, cheia de pecados.
Pecados! Antigamente era uma santa. E agora, miudinha, encolhidinha, com pouco movimento e pouco pensamento, que pecados poderia ter? Como estava com a vista curta, falou sem levantar a cabeça, repetindo os conselhos que me
dava quando eu era menino. Uma fraqueza apertou-me o coração, aproximei-me, sentei-me na esteira, junto dela.
— Mãe Margarida, procurei a senhora muito tempo. Nunca me esqueci. Foi uma felicidade encontrá-la. E carecendo de alguma coisa, é dizer. Mande buscar o que for necessário, mãe Margarida, não se acanhe.
Olhou com espanto as cadeiras, a mesinha, a lâmpada elétrica, os móveis do quarto próximo.
— Para que tanto luxo? Guarde os seus troços, que podem servir. Em cama não me deito. E quem dá o que tem a pedir vem.
— Não faz mal, mãe Margarida. Esteja sossegada, durma sossegada. Faltando lenha para o fogo, avise. Não deixe o fogo apagar-se, que as noites estão frias.
— É o que eu preciso, o fogo. O fogo e um pote.
Continuou a riscar figuras no chão. Curvada, um rosário de contas brancas e azuis aparecia pelo cabeção aberto e batia-lhe nas pelancas dos peitos.
— Queria também um tacho. O outro furtaram.
Lembrei-me do tacho velho, que era o centro da pequenina casa onde vivíamos. Mexi-me em redor dele vários anos, lavei-o, tirei-lhe com areia e cinza as manchas de azinhavre — e dele recebi sustento. Margarida utilizou-o durante quase toda a vida. Ou foi ele que a utilizou. Agora, decrépita, não podia ser doceira, e aquele traste se tornava inteiramente desnecessário.
— Está bem, mãe Margarida, terá um tacho igual ao outro.

SÃO BERNARDO GRACILIANO RAMOSOnde histórias criam vida. Descubra agora