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Quando serenei, pareceu-me que houvera barulho sem motivo. O dr. Magalhães tinha feitio para dirigir amabilidades a qualquer senhora sem que ninguém desconfiasse dele. E o papel endereçado ao Gondim devia ser literatura para composição. Não era senão isso. Coisas tão fúteis — e em
consequência um arranca-rabo estúpido, com desaforo grosso, Maria das Dores ouvindo, seu Ribeiro ouvindo. Sebo!
Madalena era honesta, claro. Não mostrara o papel para não dar o braço a torcer, por dignidade, claríssimo. Ciúme idiota.
Mais bem-comportada que ela só num convento. Circunspecta, sem nó pelas costas. E caridosa, de quebra, até com os bichinhos do mato. A respeito de pensamento nada se sabia, que no pensamento de outra pessoa ninguém vai; mas
quanto a palavras e obras era inatacável. Podia ter-me dito insultos piores. Pior que assassino? Muito duro. Mas não me queixava dela, queixava-me do Padilha, aquele descarado.
Depois da violência da manhã, sentia-me cheio de otimismo, e a brutalidade que há em mim virava-se para o mestre-escola.
Sem-vergonha! Era despedi-lo. À tarde fui tratar disso.
Padilha ofereceu-me a cadeira, sentou-se num tamborete e, sério, em atitude de galinha assada:
— Às suas ordens, seu Paulo Honório.
— Uma notícia desagradável. Não preciso mais dos seus serviços.
— Por quê? disse Padilha aturdido. Que foi que eu fiz?
— Ora essa! Pergunta a mim? Você deve saber o que fez.
— Não fiz nada. Que é que havia de fazer, trancado? A minha sujeição é maior que a dos presos da cadeia. Não saio. Se me afasto vinte passos, é com o Casimiro no cós das calças. Que foi que eu fiz? Aponte uma falta.
— Não dou explicações.
Padilha baixou a cabeça:
— Está certo. Sempre na linha, e por fim uma desta! Entra ano, sai ano, e o trouxa do empregado no toco, direito como um fuso, cumprindo as obrigações, procurando agradar. Quando espera aumento de ordenado, lá vem pontapé.
Levantou-se:
— Dê-me ao menos alguns dias para arrumar os troços e cavar um osso. Eu não posso sair assim com uma mão atrás, outra adiante.
Ergui-me também:
— Tem um mês para se retirar.
— Muito obrigado, balbuciou Padilha. A gente ainda deve agradecer. Bem feito. Se eu não servisse de espoleta a sua mulher, não acontecia isto.
Indignou-se:
— Espoleta! “Vá buscar um livro, seu Padilha.” Eu ia. “Traga papel, seu Padilha.” Eu trazia. “Copie esta página, seu Padilha.” Eu copiava. “Apanhe umas laranjas, seu Padilha.” Até apanhar laranjas! Espoleta! Aquela mulher foi a causa da minha desgraça.
— Emende a língua, ordenei.
— Que foi que eu disse? Que era espoleta. Era. Por isso o senhor me demite.
— Nada! O que há é que você andava fazendo fuxicos, homem. Andava intrigando, homem. Andava tecendo enredos, homem.
Luís Padilha embatucou. Depois, de um fôlego:
— Quais são as intrigas, os fuxicos, os enredos? O senhor não mostra um. Eu sou culpado de sua mulher ter ideias avançadas? Se é isso...
— Não, não é isso.
— Então não sei.
— Escute, Padilha. Eu estou pegando cinquenta anos e tenho corrido mundo. Você não me bota papa na língua não. Vejo muita coisa e fecho os olhos, filho de Deus. Se eu afirmo que você vivia com fuxicos, é porque você vivia com fuxicos.
Padilha catava pulgas:
— Pois diga. A minha consciência não me acusa. Diga. Quando a gente sabe, diz.
— Deixe de chove não molha, repliquei troçando com ele. Você não contou invenções a Madalena? Você não falou de mim? Falou ou não falou?
— Não falei não, seu Paulo. Se eu não sei nada!
— Tire o cavalo da chuva, rapaz. Eu ouvi.
Padilha encabulou:
— Está bem. Se o senhor ouviu, não discutimos. Naturalmente ouviu o que eu não disse.
— Ouvi o que você disse. Não teime. Tenho bom ouvido.
— Se ouviu, concedeu Padilha, foi a história da morte do Mendonça. D. Madalena já sabia...
— Sabia o quê?
— O que o povo resmunga. Calúnias. Eu expliquei tudo e defendi o senhor: “D. Madalena, isso é um caso antigo, e mexer nele não dá vida a ninguém. O velho Mendonça era uma postema, furtava as terras dos vizinhos. Quanto ao que
espalham por aí, não acredite: são aleives. Seu Paulo tem bom coração e é incapaz de matar um pinto.”
Lembrei-me da briga da manhã. Exatamente o que eu tinha presumido: mexericos daquele traste.
— Ó Padilha, por que foi que você disse que Madalena era a causa da sua desgraça?
— E o senhor quer negar? Se não fosse ela, eu não perdia o emprego. Foi ela. E, veja o senhor, eu não gostava daquilo. Muitas vezes opinei, sem rebuço: “D. Madalena, seu Paulo embirra com o socialismo. É melhor a senhora deixar de
novidade. Essas conversas não servem.” Está aí. Papagaio come milho, periquito leva a fama. O periquito sou eu.
Fraquejei:
— Que diabo discutiam vocês?
O meu ciúme tinha-se tornado público. Padilha sorriu e respondeu, hipócrita:
— Literatura, política, artes, religião... Uma senhora inteligente, a d. Madalena. E instruída, é uma biblioteca. Afinal eu estou chovendo no molhado. O senhor, melhor que eu, conhece a mulher que possui.

SÃO BERNARDO GRACILIANO RAMOSOnde histórias criam vida. Descubra agora