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- A excelentíssima, declarou seu Ribeiro, entende de escrituração.


Seu Ribeiro morava aqui, trabalhava comigo, mas não gostava de mim.


Creio que não gostava de ninguém. Tudo nele se voltava para o lugarejo que se transformou em cidade e que tinha, há meio século, bolandeira, terços, candeias de azeite e adivinhações em noites de S. João. Com mais de setenta anos, andava a pé, de preferência pelas veredas. E só falava ao telefone constrangido. Odiava a época em que vivia, mas tirava-se de dificuldades empregando uns modos cerimoniosos e expressões que hoje não se usam. O reduzido calor que ainda guardava servia para aquecer aqueles livros grossos, de cantos e lombadas de couro. Escrevia neles com amor lançamentos complicados, e gastava quinze minutos para abrir um título, em letras grandes e curvas, um pouco trêmulas, as iniciais cheias de enfeites.


- Entende muito, continuou. E embora eu não concorde integralmente com o método que preconiza, reconheço que poderá, querendo, encarregar-se da escrita.


- Obrigada.


- Não há de quê. A excelentíssima conhece a matéria e tem caligrafia. Eu sou uma ruína. Qualquer dia destes...


Catou palavras:


- Qualquer dia destes estou com Deus.


- Sempre diz isso, resmungou Padilha. O senhor tem fôlego de sete gatos.


Pretendia acumular os cargos de professor e guarda-livros. E impacientava-se.


- Não duro, estou gasto, respondeu seu Ribeiro. E morreria tranquilo deixando os livros a uma pessoa que não viesse estragá-los com raspadelas.


- Isso é fácil, murmurou Padilha.


- Talvez, mas convém saber. Aqui a excelentíssima...


- Tinha graça, tornou Padilha, d. Madalena escrevendo os diversos a diversos.


- Nada mais natural, atalhou Madalena. Não desejo, Deus me livre. Seu Ribeiro está forte.


- Somos todos mortais, minha senhora. É verdade que ninguém pode penetrar os desígnios da Providência, mas na minha idade...


- Qual é o ordenado?


- Ora essa! estranhou Padilha. A senhora ocupar-se com essas migalhas! Receber ordenado! Era tirar de uma mão e deitar na outra.


- Por que não? Se seu Ribeiro tiver de aposentar-se... Quanto ganha o senhor, seu Ribeiro?


O guarda-livros afagou as suíças brancas:


- Duzentos mil-réis.


Madalena desanimou:


- É pouco.


- Como? bradei estremecendo.


- Muito pouco.


- Que maluqueira! Quando ele estava com o Brito, ganhava cento e cinquenta a seco. Hoje tem duzentos, casa, mesa e roupa lavada.


- É exato, confessou seu Ribeiro. Não me falta nada, o que recebo chega.


- Se o senhor tivesse dez filhos, não chegava, disse Madalena.


- Naturalmente, concordou d. Glória.


- Ora gaitas! berrei. Até a senhora? Meta-se com os romances.


Madalena empalideceu:


- Não é preciso zangar-se. Todos nós temos as nossas opiniões.


- Sem dúvida. Mas é tolice querer uma pessoa ter opinião sobre assunto que desconhece. Cada macaco no seu galho. Que diabo! Eu nunca andei discutindo gramática. Mas as coisas da minha fazenda julgo que devo saber. E era bom que não me viessem dar lições. Vocês me fazem perder a paciência.


Joguei o guardanapo sobre os pratos, antes da sobremesa, e levantei-me. Um bate-boca oito dias depois do casamento! Mau sinal. Mas atirei a responsabilidade para d. Glória, que só tinha dito uma palavra.

SÃO BERNARDO GRACILIANO RAMOSOnde histórias criam vida. Descubra agora