Fazia dois anos que eu estava casado, e por isso João Nogueira, padre Silvestre e Azevedo Gondim jantavam conosco.
Ora exatamente nesse dia repreendi Padilha e ele me gaguejou umas desculpas a que não liguei importância, mas que depois de algumas horas cresceram muito.
— Ó Padilha, chegue cá, disse-lhe de manhã no jardim, onde ele colhia flores. Ninguém aqui está preso. Se o serviço lhe desagrada, é arribar.
— Por quê, seu Paulo? exclamou Luís Padilha atordoado.
— Ora por quê! Apanhando flores, homem! Olhe o relógio.
— Foi a d. Madalena que mandou tirar umas rosas.
— Você é jardineiro? A d. Madalena não dá ordens. Você me anda gastando o tempo com falatórios!
— Isso não é comigo, defendeu-se Padilha. Queixe-se dela. A moça me pediu umas flores para enfeitar a mesa, à tarde. Que é que eu havia de fazer? Havia de negar? E quanto às conversas, seu Paulo compreende. Uma senhora instruída
meter-se nestas bibocas! Precisa uma pessoa com quem possa entreter de vez em quando palestras amenas e variadas.
Achei graça. E não prestei mais atenção a Padilha, que, espetando os dedos nos espinhos, devastou uma roseira, à pressa, e escapuliu-se. Palestras amenas!
Mais tarde, no escritório, uma ideia indeterminada saltou-me na cabeça, esteve por lá um instante quebrando louça e deu o fora. Quando tentei agarrá-la, ia longe. Interrompi a leitura da carta que tinha diante de mim e, sem saber por quê, olhei
Madalena desconfiado. Estava de pé, encostada à carteira, mexia distraída as folhas do razão e contemplava pela janela os paus-d’arco distantes.
Maquinalmente, assinei o papel; Madalena estendeu-me outro, maquinalmente. Nisto a ideia voltou. Movia-se, porém, com tanta rapidez que não me foi possível distingui-la. Estremeci, e pareceu-me que a cara de Madalena estava mudada. Mas a impressão durou pouco.
Embrenhei-me no trabalho e, à tarde, quando os amigos desceram do automóvel, sentia-me perfeitamente tranquilo.
— Ora, sejam bem aparecidos.
Como não eram de cerimônia, levei-os para o interior, fui matar a sede do Gondim, que, quando chega a S. Bernardo, exige conhaque.
Durante o jantar, estiveram todos muito animados. E até eu, que ignoro os assuntos que eles debatiam, entrei na dança.
Para começar, Azevedo Gondim, a quem o conhaque tinha tirado as peias da língua, elogiou a vida campestre:
— Isto é que é! Vejam se na cidade, ciscando no fundo dos quintais, se criava um peru deste tamanho. Que bicho fornido! Benza-o Deus.
D. Glória deu um muxoxo e desviou a vista do centro da mesa, onde, acocorado na travessa, um peru recebia aqueles louvores despropositados.
Padre Silvestre acompanhou o movimento de d. Glória e deu com os olhos nos canteiros do jardim e nas alamedas do pomar.
— Realmente deve ser uma delícia viver neste paraíso. Que beleza!
— Para quem vem de fora, atalhei. Aqui a gente se acostuma. Afinal não cultivo isto como enfeite. É para vender.
— As flores também? perguntou Azevedo Gondim.
— Tudo. Flores, hortaliça, fruta...
— Está aí! exclamou padre Silvestre balançando a cabecinha grisalha e enrugando a testa estreita. O que é ter senso! Se todos os brasileiros pensassem assim, não estaríamos presenciando tanta miséria.
— Política, padre Silvestre? fez João Nogueira sorrindo.
Padre Silvestre arregalou os olhinhos baços:
— Por que não? O senhor há de confessar que estamos à beira de um abismo.
Padre Silvestre é desorientado. Com uma freguesia trabalhosa, anda no mundo da lua. Danadamente liberal.
Padilha meteu o bedelho na conversa:
— Apoiado.
— Um abismo, repetiu padre Silvestre.
— Que abismo? perguntou Azevedo Gondim.
O reverendo estudou uma resposta enérgica:
— Isso que se vê. É a falência do regímen. Desonestidades, patifarias.
— Quais são os patifes? inquiriu João Nogueira.
Padre Silvestre estirou o beiço inferior e amoitou-se. As opiniões dele são as opiniões dos jornais. Como, porém, essas opiniões variam, padre Silvestre, impossibilitado de admitir coisas contraditórias, lê apenas as folhas da oposição.
Acredita nelas. Mas experimenta às vezes dúvidas. Elas juram que os homens do governo são malandros, e ele conhece alguns respeitáveis. Isso prejudica as convicções que a letra impressa lhe dá. Necessitando acomodar as suas observações com as afirmações alheias, acha que os políticos, individualmente, são criaturas como as outras, mas em conjunto são uns malfeitores.
— Ora essa! Não me compete denunciar ninguém. Os fatos são os fatos. Observe.
— É bom apontar, insistiu João Nogueira.
— Para quê? A facção dominante está caindo de podre. O país naufraga, seu doutor. É o que lhe digo: o país naufraga.
Passei-lhe uma garrafa e informei-me:
— Que foi que lhe aconteceu para o senhor ter essas ideias? Desgostos? Cá no meu fraco entender, a gente só fala assim quando a receita não cobre a despesa. Suponho que os seus negócios vão bem.
— Não se trata de mim. São as finanças do Estado que vão mal. As finanças e o resto. Mas não se iludam. Há de haver uma revolução!
— Era o que faltava. Escangalhava-se esta gangorra.
— Por quê? perguntou Madalena.
— Você também é revolucionária? exclamei com mau modo.
— Estou apenas perguntando por quê.
— Ora por quê! Porque o crédito se sumia, o câmbio baixava, a mercadoria estrangeira ficava pela hora da morte. Sem falar na atrapalhação política.
— Seria magnífico, interrompeu Madalena. Depois se endireitava tudo.
— Com certeza, apoiou Luís Padilha.
— Vocês sabem o que estão dizendo?
— O que admira é padre Silvestre desejar a revolução, disse Nogueira. Que vantagem lhe traria ela?
— Nenhuma, respondeu o vigário. A mim não traria vantagem. Mas a coletividade ganharia muito.
— Esperem por isso, atalhou Azevedo Gondim. Os senhores estão preparando uma fogueira e vão assar-se nela.
— Literatura! resmungou Padilha.
— Literatura não, gritou Azevedo Gondim. Se rebentar a encrenca, há de sair boa coisa, hem, Nogueira?
— O fascismo.
— Era o que vocês queriam. Teremos o comunismo.
D. Glória benzeu-se e seu Ribeiro opinou:
— Deus nos livre.
— Tem medo, seu Ribeiro? perguntou Madalena sorrindo.
— Já vi muitas transformações, excelentíssima, e todas ruins.
— Nada disso, asseverou padre Silvestre. Essas doutrinas exóticas não se adaptam entre nós. O comunismo é a miséria, a desorganização da sociedade, a fome.
Seu Ribeiro passou os dedos pela careca lustrosa:
— No tempo de d. Pedro, corria pouco dinheiro, e quem possuía um conto de réis era rico. Mas havia fartura, a abóbora apodrecia na roça. Mamona, caroço de algodão, não tinham valor. Com a proclamação da república ficaram custando os olhos da cara. Por isso eu digo que essas mudanças só servem para atrapalhar a vida. A estrada de ferro...
— Uma nação sem Deus! bradava padre Silvestre a d. Glória. Fuzilaram os padres, não escapou um. E os soldados, bêbedos, espatifavam os santos e dançavam em cima dos altares.
D. Glória gemia com as mãos no peito:
— Que horror! É possível! Nos altares!
— Espatifaram nada! interveio Padilha. Isso é propaganda
contrarrevolucionária.
— E o senhor trabalha para isso, padre Silvestre, exclamou Gondim.
O vigário desculpou-se:
— Eu não. Estou quieto, no meu canto. Agora achar que o governo é mau, eu acho. Que há urgências de reforma, há. Quanto ao comunismo, lorota, não pega. Descansem: entre nós não pega. O povo tem religião, o povo é católico.
João Nogueira discordou:
— É o que ele não é. Ninguém conhece doutrina. Se um protestante canta hinos e prega o evangelho, os devotos das procissões vão escutá-lo; outros pendem para o espiritismo; e a canalha acredita em feitiçaria e até adora árvores. Muitos entram no catolicismo como num hotel, escolhem um prato, com fastio, e cruzam o talher. Os mais avançados são dispépticos. O senhor se engana, padre Silvestre; essa gente
ouve missa, mas não é católica, e tanto se deixa levar para um lado como para outro.
Padre Silvestre desnorteou-se:
— Nesse caso...
Mas João Nogueira tinha terminado. E estava conversando comigo, em voz baixa, esculhambando o dr. Magalhães.
Madalena falava com seu Ribeiro:
— Que é que o senhor perdia?
— Não sei, excelentíssima. Talvez perdesse. A mim só chegam desgraças. Enfim tenho aqui um pedaço de pão. E se essa infelicidade viesse, nem isso me davam.
Madalena procurava convencê-lo, mas não percebi o que dizia. De repente invadiu-me uma espécie de desconfiança. Já havia experimentado um sentimento assim desagradável. Quando?
João Nogueira aniquilava o dr. Magalhães. D. Glória, cheia de comida e de calor, ia cerrando os olhos, já indiferente ao perigo que anunciavam. Seu Ribeiro, cabeçudo, não queria inovações. E Azevedo Gondim, vermelho, afirmava a padre
Silvestre:
— Não há. O Nogueira tem razão, não há. Conheço homens que defendem a religião nos jornais e nunca viram a Bíblia.
Quando? Num momento esclareceu-se tudo: tinha sido naquele mesmo dia, no escritório, enquanto Madalena me entregava as cartas para assinar.
Sim senhor! Conluiada com o Padilha e tentando afastar os empregados sérios do bom caminho. Sim senhor, comunista! Eu construindo e ela desmanchando.
Levantamo-nos e fomos tomar café no salão.
— Sim senhor, comunista!
— É a corrução, a dissolução da família, teimava padre Silvestre.
Ninguém respondeu.
Ignoro essas coisas, naturalmente, mas desejei saber o que Madalena pensava a respeito delas.
O vigário só fazia gritar.
Qual seria a opinião de Madalena?
— Aí padre Silvestre tem razão, concordou Gondim. A religião é um freio.
— Bobagem! disse Nogueira. Quem é cavalo para precisar freio?
Qual seria a religião de Madalena? Talvez nenhuma. Nunca me havia tratado disso.
— Monstruosidade.
E repeti baixinho, lentamente e sem convicção:
— Monstruosidade!
Materialista. Lembrei-me de ter ouvido Costa Brito falar em materialismo histórico. Que significava materialismo histórico?
A verdade é que não me preocupo muito com o outro mundo. Admito Deus, pagador celeste dos meus trabalhadores, mal remunerados cá na terra, e admito o diabo, futuro carrasco do ladrão que me furtou uma vaca de raça. Tenho portanto um pouco de religião, embora julgue que, em parte, ela é dispensável num homem. Mas mulher sem religião é horrível.
Comunista, materialista. Bonito casamento! Amizade com o Padilha, aquele imbecil. “Palestras amenas e variadas.” Que haveria nas palestras? Reformas sociais, ou coisa pior. Sei lá! Mulher sem religião é capaz de tudo.
— Sem dúvida, respondi a uma lenga-lenga que padre Silvestre me infligia.
Seu Ribeiro e Azevedo Gondim amolavam-se, com pachorra. D. Glória cochilava. Padilha fumava a um canto.
— Provavelmente.
Creio que disse disparate, porque padre Silvestre divergiu e sapecou-me uma demonstração incompreensível.
Procurei Madalena e avistei-a derretendo-se e sorrindo para o Nogueira, num vão de janela.
Confio em mim. Mas exagerei os olhos bonitos do Nogueira, a roupa benfeita, a voz insinuante. Pensei nos meus oitenta e nove quilos, neste rosto vermelho de sobrancelhas espessas. Cruzei descontente as mãos enormes, cabeludas, endurecidas em muitos anos de lavoura. Misturei tudo ao materialismo e ao comunismo de Madalena — e comecei a sentir ciúmes.
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SÃO BERNARDO GRACILIANO RAMOS
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