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Enterrou-se debaixo do mosaico da capela-mor.
Vesti-me de preto; encomendei uma lápida; o dr. Magalhães, padre Silvestre, João Nogueira, Azevedo Gondim, os proprietários vizinhos, vieram trazer-me pêsames. Deixei a cama de casal e mudei-me para um quarto pequeno que tinha, à beira do telhado, um ninho de carriças. Pela manhã as carriças pipilavam desesperadamente. Na mesa da cabeceira amontoavam-se telegramas e envelopes tarjados.
Como necessitava distração, dediquei-me nervosamente a uma derrubada de madeira na mata. Depois mandei consertar o paredão do açude, que vazava.
Mas o entusiasmo esfriou depressa. Aquilo era meio de vida, não era meio de morte.
E pensava em Madalena. Creio na verdade que a lembrança dela sempre esteve em mim. O que houve foi que, na atrapalhação dos primeiros dias, confundiu-se com uma chusma de azucrinações diferentes umas das outras. Mas
quando essas azucrinações se tornaram apenas um sedimento no meu espírito, veio à superfície. Raramente conseguia agitar-me e dissolvê-la: recompunha-se logo e ficava em suspensão. E os assuntos mais atraentes me traziam enfado e bocejos.
Vivia agora a passear na sala, as mãos nos bolsos, o cachimbo apagado na boca. Ia ao escritório, olhava os livros com tédio, saía, atravessava os corredores, percorria os quartos, voltava às caminhadas na sala.
Certo dia, na horta, espiava um formigão que se exercitava em marchas e contramarchas inconsequentes. Inconsequentes para mim, está visto, que ignorava as intenções dele. A voz antipática de d. Glória interrompeu-me a observação:
— Vim dizer adeus. Vou-me embora.
Levantei a cabeça e vi-a diante de mim, tesa, enlutada naquele vestido velho malfeito, que entufava nos ombros quando ela se aprumava.
— Para onde?
D. Glória descreveu vagamente, com o dedo descarnado, um arco:
— Vou-me embora.
— A senhora não tem para onde ir.
E procurei o formigão, que tinha desaparecido.
— Vou, respondeu firme d. Glória.
Esforcei-me por dissuadi-la:
— Isso não tem cabimento, mulher. Ganhar o mundo sem destino! Crie juízo.
D. Glória continuou, direita como um cabo de vassoura:
— Não estou pedindo conselho. Vim despedir-me, que não saio como negro fugido. Mande-me as suas ordens.
Encetei um dos meus intermináveis passeios, de um lado para outro:
— Está bem. Cada qual é dono do seu nariz. Quando volta?
— Nunca.
— Está bem.
Apressei o passo:
— Com quem vai?
— Com Deus.
— Pois sim. O automóvel tem gasolina. Divirta-se.
— Obrigada. Vou a pé.
Aí eu queimei as alpercatas:
— Vai nada!
Parei soprando:
— Largar-se pelo mundo, à toa, e dizer que eu botei a senhora de casa para fora, que sou morto a fome, que arribou daqui com a roupa do corpo, não é?
D. Glória, cada vez mais espichada, agastou-se:
— E o senhor me prende? Não matei, não roubei, não difamei... Vou.
E eu:
— Quem está falando em prender a senhora? Deixe de doidice. Quer dar o fora? Perfeitamente, não lhe seguro as pernas. Se quisesse ficar, podia viver aí até criar canhão, que ninguém lhe pisava nos calos. Mas se não quer, acabou-se. Agora o que não tem jeito é escafeder-se como quem vai tangido. Isso não. Ao deus-dará, com uma no cano, outra no fecho, não. Prepare-se, arranje os seus picuás.
— Estão arranjados.
— Então é viajar como gente, com decência. É necessário que se saiba onde vai morar e quanto precisa para se manter.
— Não preciso de nada. Onde vou morar não sei. O que sei é que tenho de sair hoje.
— Não seja criança, disse eu arrastando as palavras. A senhora é capaz de pegar no pesado? Não dá meia missa. Encruou nos romances e até os assentamentos de batizados lhe seriam difíceis.
Pouco a pouco d. Glória abrandou. Ignoro se procedeu assim em conformidade com o hábito de abrandar ou se tinha vindo resolvida a abrandar.
— Pense no aluguel das casas na cidade, pense no preço dos remédios. Adoecer é fácil, d. Glória, mas tirar a moléstia do corpo é um trabalhão. Pense no mercado, no cobrador da luz, na pena-d’água. Hoje em dia a vida é difícil em toda a parte, mas na cidade a vida é um buraco, d. Glória.
D. Glória confessou que a vida na cidade é de fato um buraco. Tinha mostrado o desprendimento e a altivez indispensáveis. Não era justo exigir mais.
Declarei que devia a Madalena o ordenado de três anos. D. Glória acreditou, ou fingiu acreditar.
— É razoável a senhora receber isso.
D. Glória concordou.
Dei-lhe dinheiro para a viagem, marquei-lhe uma pensão de duzentos mil-réis mensais e remeti-a a João Nogueira, que a hospedou por uma noite e a embarcou.
Passados alguns dias seu Ribeiro demitiu-se.
— Está falando sisudo, seu Ribeiro?
— Esta casa me provoca recordações muito pungentes.
— E a mim, homem. Que diabo! Mas a sua saída é tolice.
— Não duvido, senhor Paulo Honório, não duvido.
— Ofereceram-lhe algum emprego?
— Nenhum.
— Então! É tolice. E o pior é que nem lhe posso dar uma recomendação. O senhor com essa idade não se coloca. Felizmente está aqui há anos e tem feito economia. Vai retirar uma fortuna. Sempre dá para ir roendo.
— Levo muita saudade, senhor Paulo Honório, gemeu seu Ribeiro limpando os olhos. Saudade cruciante. Parto com o coração dilacerado.
— Pois não vá, homem. Todos gostam do senhor. Fique.
— Impossível, inteiramente impossível. A minha resolução é inabalável.
— Está bem.
E olhei com tristeza o escritório, mais desatravancado depois que a banca de Madalena tinha sido afastada para um canto.
Assim o excelente seu Ribeiro, que eu esperava enterrar em S. Bernardo, foi terminar nos cafés e nos bancos dos jardins a sua velhice e as suas lembranças.

SÃO BERNARDO GRACILIANO RAMOSOnde histórias criam vida. Descubra agora