Tornei a encontrar a mocinha loura. Eu voltava da capital, aonde tinha ido por causa do sem-vergonha do Brito.
A coisa se deu assim. Depois do meu telegrama (lembram-se: o telegrama em que recusei duzentos mil-réis àquele pirata), a Gazeta entrou a difamar-me. A princípio foram mofinas cheias de rodeios, com muito vinagre, em seguida o ataque tornou-se claro e saíram dois artigos furiosos em que o nome mais doce que o Brito me chamava era assassino. Quando li essa infâmia, armei-me de um rebenque e desci à cidade.
— O que o senhor deve fazer é processá-lo, aconselhou João Nogueira. É fácil metê-lo na cadeia.
— E querendo defender-se, tem cá o Cruzeiro, insinuou Azevedo Gondim. Pode escrever. Ou então escrevo eu, ou escreve o Nogueira. Infelizmente o Cruzeiro circula pouco. Mas é o que temos. Disponha.
— Obrigado, Gondim; obrigado, dr. Nogueira. Depois resolvemos. Não vale a pena quebrar a cabeça com uma tolice dessa.
E ficamos no hotel até onze da noite, jogando dominó a tostão o tento.
No outro dia tomei o trem, ferrei no sono e acordei às dez horas, na estação central. Logo ali, com o rebenque debaixo do braço, comecei a examinar as caras.
Subi a rua do Comércio, dobrei o Livramento, a Alegria, parei em frente à Gazeta. Olhei um instante, pelas grades, as caixetas imundas, entrei, atravessei a sala de composição, a de impressão e, lá no fundo, desemboquei na redação, onde só estava um rapaz amarelo preparando telegramas com os jornais do Recife da véspera. O diretor tinha ido a Pajuçara.
— Obrigado.
Voltei pelo mesmo caminho e estive uma hora no relógio oficial, observando os passageiros dos bondes de Ponta-da-Terra. Afinal surgiu o focinho de rato do Brito.
— Olá!
Recuou, tentou retomar o estribo, mas o carro já ia longe. Franziu a testa com dignidade. Vendo o rebenque, empalideceu e gaguejou:
— Bons olhos o vejam. Que sorte! Sim senhor, precisamos conversar.
Agarrei-lhe o braço, puxei-o para junto do relógio e disse-lhe, quase cochichando para não espantar os transeuntes:
— Então, seu filho de uma égua, esses artigos...
— Aquilo é matéria paga, explicou o Brito. Seção livre, não viu logo? Vamos à redação, lá nos entendemos melhor.
Em resposta passei-lhe os gadanhos no cachaço e dei-lhe um bando de chicotadas. Juntaram-se muitas pessoas, um guarda civil apitou, houve protestos, gritos, afinal Costa Brito conseguiu escapulir-se e azulou pelo Comércio, em direção aos Martírios.
Encaminhei-me ao hotel, mas nem tive tempo de almoçar, porque fui chamado à polícia. Apertaram-me com interrogatórios redundantes, perdi o trem das três e não consegui demonstrar ao delegado que ele era ranzinza e estúpido. Aborrecido, aporrinhado, recorri a um bacharel (trezentos mil-réis, fora despesas miúdas com automóvel, gorjetas, etc.) e embarquei vinte e quatro horas depois, levando nos ouvidos um sermão do secretário do interior, que me seringou liberdade de imprensa e outros disparates.
No vagão comprei os jornais do dia. Nenhum noticiava o espalhafato. Camaradas. Comecei a ler umas coisas interessantes sobre a apicultura. Pouco a pouco esqueci as burrices do delegado e o liberalismo do secretário. E reconciliado com o Brito, confessei a mim mesmo que ele tinha bom coração e provavelmente não reincidiria. Concentrei-me na leitura. Efetivamente as abelhas seriam para nós uma fonte de riqueza.
Nesse ponto veio sentar-se a meu lado uma senhora vestida de preto. Como o sol a incomodasse, baixei a portinhola.
— Agradecida.
Reparando nela, reconheci a mulher que, um mês antes, em casa do dr. Magalhães, escutava o romance de d. Marcela.
— Não tem de quê, d. Glória.
Notei que ela estava com um pacote a furar-se nos joelhos agudos e pedi-o, coloquei-o junto à minha bagagem. Era uma velha acanhada: sorriso insignificante e modos de pobre. O trem pôs-se em movimento. E encetamos um diálogo que se
foi animando até nos tornarmos amigos.
— Esta Great Western é uma joça. Porcaria! Isto nunca foi carro. Que chiqueiro!
Inicio de ordinário com frases assim as minhas viagens a trem. D. Glória sobressaltou-se, receando que a companhia ouvisse. Em tom confidencial, achou que os carros não eram bons.
— Péssimos, d. Glória.
Ela atentou em mim com respeito:
— Creio que já nos vimos. Não me lembro. A minha memória é uma lástima.
— Em casa do juiz, o mês passado. A senhora e uma mocinha loura...
Arregalou os olhos:
— Ah! sim.
E a conversa caiu. Para levantá-la, abri o jornal e preguei-lhe um dedo:
— Está aqui um artigo baita sobre a apicultura. O autor disto é osso.
Não compreendeu. De repente exclamou:
— Agora me recordo. O senhor estava com o dr. Nogueira, discutindo política.
— É isso mesmo.
Houve uma pausa.
— O senhor mora na capital?
— Não, moro no interior.
— Em Viçosa?
— É.
— Eu também, há pouco tempo. Mas cidade pequena... Horrível, não é?
— A cidade pequena? E a grande. Tudo é horrível. Gosto do campo, entende? do campo.
D. Glória fechou a cara:
— Mato? Santo Deus! Mato só para bicho. E o senhor vive no mato?
— Em S. Bernardo.
D. Glória não conhecia S. Bernardo, e essa ignorância me ofendeu, porque para mim S. Bernardo era o lugar mais importante do mundo.
— Uma boa fazenda. Não há lá essa água podre que se bebe por aí. Lama. Não senhora, há conforto, há higiene.
D. Glória retificou a espinha, ergueu a voz e desfez o ar apoucado:
— Não me dou. Nasci na cidade, criei-me na cidade. Saindo daí, sou como peixe fora da água. Tanto que estive cavando transferência para um grupo da capital. Mas é preciso muito pistolão. Promessas...
— Ah! É professora?
— Não. Professora é minha sobrinha.
— Aquela moça que estava com a senhora em casa do dr. Magalhães?
— Sim.
— E como é a graça de sua sobrinha, d. Glória?
— Madalena. Veja o senhor. Fez um curso brilhante...
— Espere lá. O Nogueira e o Gondim me falaram nela. Mulher prendada, bonita. Perfeitamente. O Gondim falou muito. O Gondim do Cruzeiro, um da venta chata.
— Sei.
E recolheu, sorrindo, os elogios à sobrinha.
— Pois uma menina como aquela encafuar-se num buraco, seu...
— Paulo Honório, d. Glória. Faz pena. Isso de ensinar bê-á-bá é tolice. Perdoe a indiscrição, quanto ganha sua sobrinha ensinando bê-á-bá?
D. Glória baixou a voz para confessar que as professoras de primeira entrância tinham apenas cento e oitenta mil-réis.
— Quanto?
— Cento e oitenta mil-réis.
— Cento e oitenta mil-réis? Está aí! É uma desgraça, minha senhora. Como diabo se sustenta um cristão com cento e oitenta mil-réis por mês? Quer que lhe diga? Faz até raiva ver uma pessoa de certa ordem sujeitar-se a semelhante miséria. Tenho empregados que nunca estudaram e são mais bem pagos. Por que não aconselha sua sobrinha a deixar essa profissão, d. Glória?
D. Glória referiu-se à dificuldade de arranjar empregos e ao montepio.
— Que montepio! Isso vale nada! E empregos... Vou indicar um meio de sua sobrinha e a senhora ganharem dinheiro a rodo. Criem galinhas.
D. Glória formalizou-se, e um passageiro próximo, como eu gritava entusiasmado, pôs-se a rir. Era um mocinho de bigodinho e rubi no dedo. Aproximei dele o rosto cabeludo e a mão cabeluda:
— O senhor está rindo sem saber de quê. Vejo que possui uma carta. Quanto lhe rende? Se não tem pai rico, deve ser promotor público. Faria melhor negócio criando galinhas.
O mocinho encabulou.
— Boa ocupação, d. Glória, ocupação decente. Se quiser dedicar-se a ela, recomendo-lhe a Orpington. Escola! Bestidade. Abri uma na fazenda e entreguei-a ao Padilha. Sabe quem é? Um idiota. Mas diz ele que há progresso. E eu acredito. Pelo menos o Gondim e padre Silvestre estiveram lá examinando a molecoreba e acharam tudo em ordem.
D. Glória enrugou e desenrugou a cara:
— Cada qual tem o seu meio de vida.
— História! Dê um salto a S. Bernardo para eu lhe mostrar o que é uma lavoura de fazer água na boca.
Essa conversa, é claro, não saiu de cabo a rabo como está no papel. Houve suspensões, repetições, mal-entendidos, incongruências, naturais quando a gente fala sem pensar que aquilo vai ser lido. Reproduzo o que julgo interessante. Suprimi diversas passagens, modifiquei outras. O discurso que atirei ao mocinho do rubi, por exemplo, foi mais enérgico e mais extenso que as linhas chochas que aqui estão. A parte referente à enxaqueca de d. Glória (e a enxaqueca ocupou, sem exagero, metade da viagem) virou fumaça. Cortei igualmente, na cópia, numerosas tolices ditas por mim e por d. Glória. Ficaram muitas, as que as minhas luzes não
alcançaram e as que me pareceram úteis. É o processo que adoto: extraio dos acontecimentos algumas parcelas; o resto é bagaço. Ora vejam. Quando arrastei Costa Brito para o relógio oficial, apliquei-lhe uns quatro ou cinco palavrões obscenos. Esses palavrões, desnecessários porque não aumentaram nem diminuíram o valor das chicotadas, sumiram-se, conforme notará quem reler a cena da agressão, cena que, expurgada dessas indecências, está descrita com bastante sobriedade.
Uma coisa que omiti e produziria bom efeito foi a paisagem. Andei mal. Efetivamente a minha narrativa dá ideia de uma palestra realizada fora da terra. Eu me explico: ali, com a portinhola fechada, apenas via de relance, pelas outras janelas, pedaços de estações, pedaços de mata, usinas e canaviais. Muitos canaviais, mas este gênero de agricultura não me interessa. Vi também novilhos zebus, gado que, na minha opinião, está acabando de escangalhar os nossos
rebanhos.
Hoje isso forma para mim um todo confuso, e se eu tentasse uma descrição, arriscava-me a misturar os coqueiros da lagoa, que apareceram às três e quinze, com as mangueiras e os cajueiros, que vieram depois. Essa descrição, porém, só seria aqui embutida por motivos de ordem técnica. E não tenho o intuito de escrever em conformidade com as regras. Tanto que vou cometer um erro. Presumo que é um erro. Vou dividir um capítulo em dois. Realmente o que se segue podia encaixar-se no que procurei expor antes desta digressão. Mas não tem dúvida, faço um capítulo especial por causa da Madalena.
VOCÊ ESTÁ LENDO
SÃO BERNARDO GRACILIANO RAMOS
RomantizmTodos os direitos reservados a seu respectivo autor e editora