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Na estação d. Glória apresentou-me a sobrinha, que tinha ido recebê-la.
Atrapalhei-me e, para desocupar a mão, deixei cair um dos pacotes que ia entregar ao ganhador.
— Muito prazer. Eu já conhecia a senhora de nome. E de vista. Mas não sabia que era uma pessoa só. Encontramo-nos há dias.
— Há um mês.
— Perfeitamente. Estive conversando sobre isso com sua tia, ótima companheira de viagem. Sim senhora, muito prazer.
Dirigi-me ao hotel. E como a casa delas era no meu caminho, saímos juntos.
— D. Marcela disse-me que o senhor tem uma propriedade bonita, começou Madalena.
— Bonita? Ainda não reparei. Talvez seja bonita. O que sei é que é uma propriedade regular.
E embuchei, afobado. Até então os meus sentimentos tinham sido simples, rudimentares, não havia razão para ocultá-los a criaturas como a Germana e a Rosa. A essas azunia-se a cantada sem rodeios, e elas não se admiravam, mas uma
senhora que vem da escola normal é diferente. Emburrei, pois, e contei os embrulhos que o ganhador equilibrava na cabeça. Fiz um esforço para endereçar amabilidades a d. Glória:
— O convite está de pé, sim senhora, e eu tenho a sua promessa de ir passar uns dias na fazenda. Espero que leve a professora. Vem um automóvel, em dez minutos estão lá.
D. Glória não tinha prometido nada. Madalena espantou-se:
— Ah! não.
— Por quê? Agora com as férias...
— Passeios... Isso é para rico.
E, sorrindo:
— Que diria sua família se o senhor metesse duas desconhecidas em casa?
Aí quem se espantou fui eu:
— Mas não tenho família, minha senhora, nunca tive. Vivo só, com Deus.
— Então é pior, respondeu Madalena.
— Inconveniente, declarou d. Glória.
Cocei a barba:
— É pena. Um lugar tão bom para uma pessoa se refazer! Acabou-se. Se é inconveniente, fica o dito por não dito.
Depois tornei:
— Mas inconveniente por quê? Pois eu tinha muito gosto em mostrar a d. Glória uns marrecos-de-pequim que são mesmo uma beleza. Já viu os marrecos-de-pequim, d. Madalena?
— Ainda não.
— Está aí! resmunguei. Estudam a vida inteira nem sei para quê.
— Descansar um pouco? disse d. Glória.
Estávamos à porta da casa delas, na Canafístula.
— Obrigado. Vou chegando ao hotel.
Demorei-me ainda um minuto:
— Estão as senhoras aqui pessimamente instaladas. Adeus. E se resolverem ir a S. Bernardo, avisem, para mandar o automóvel.
— Perfeitamente, disse d. Glória. E muito agradecida pela companhia.
— Não tem de quê.
No hotel marchei para o banheiro, fui tirar o carvão e o suor. E ia-me sentando à mesa quando chegaram João Nogueira, Azevedo Gondim e padre Silvestre.
— Então que desordem foi essa? perguntou Azevedo Gondim. Soubemos ontem à noite.
— Imagine como nos assustamos, acrescentou o vigário. Um escândalo! É verdade que o Brito andou mal.
— Andou. Necessidade. Ele não é ruim. Queria duzentos mil-réis, coitado, e eu torci o corpo. Tolice: gastei bem seiscentos, sem contar a aporrinhação de dois dias. O diabo é que, se ele recebesse os duzentos, havia de pedir mais duzentos e assim
por diante.
— A notícia que circulou ontem foi que ele estava no hospital, com uma punhalada, informou padre Silvestre. Constou até que tinha morrido. Felizmente hoje sossegamos. Ferimentos leves, não?
— Que ferimentos! O que houve foi troca de palavras. O Brito disse uns desaforos, eu disse outros, juntou-se gente e a polícia entrou na questão, que não era com ela. Não houve nada.
— Logo vi, bradou padre Silvestre. Um homem prudente como o senhor não ia provocar barulho.
— Essa agora! gritou Azevedo Gondim. Pois eu tinha escrito duas colunas sobre o caso para o número de domingo.
João Nogueira aproximou-se e falou-me ao ouvido:
— Francamente, que foi que houve?
— Uma arenga sem importância.
E, pegando a ocasião:
— Ó dr. Nogueira, quem é aquela d. Glória?
— A tia da professora?
— Sim. Que tal é essa família?
— Em que sentido?
— Em tudo, respondi evasivamente. A velha viajou hoje comigo, no trem. É simpática.
— Mas que interesse tem o senhor...
— É que a mulher, indiretamente, tocou-me numa pretensão: transferência da sobrinha. Eu nunca vi o diretor da instrução pública, mas dou-me com o Silveira, que faz regulamentos. Talvez não fosse impossível conseguir a transferência. Se elas merecem, está claro.
— Mas é uma excelente professora, seu Paulo, e um nobre caráter. O senhor quer retirá-la! Que lembrança! Se ela sair, sabe o que acontece? Mandam para cá uma velha analfabeta.
— Tem razão.
E, em voz alta:
— Jantar?
Agradeceram e despediram-se. Padre Silvestre abraçou-me:
— O amigo numa entalação dessa! A culpa foi do Brito. Ele é meio esquentado, mas ultimamente a orientação que vem dando à Gazeta é boa.
Acompanhei-os:
— Ó Gondim, eu precisava falar com você.
Ficou.
— Estou morrendo de fome, Gondim. Dois dias quase sem comer! Calcule. Vamos jantar?
Recusou o jantar, mas aceitou um copo de cerveja. Quando cheguei à sobremesa, ele ia na terceira garrafa.
— Ó Gondim, você me falou há tempo numa professora.
— A Madalena?
— Sim. Encontrei-a uma noite destas e gostei da cara. É moça direita?
Azevedo Gondim encetou a quarta garrafa de cerveja e desmanchou-se em elogios.
— Mulher superior. Só os artigos que publica no Cruzeiro!
Desanimei:
— Ah! faz artigos!
— Sim, muito instruída. Que negócio tem o senhor com ela?
— Eu sei lá! Tinha um projeto, mas a colaboração no Cruzeiro me esfriou. Julguei que fosse uma criatura sensata.
— Essa agora! bradou Gondim picado. O senhor tem cada uma!
— Está bem. Para você não há segredo. Ouça. Estou aborrecido com o Padilha.
— Alguma carraspana que ele tomou?
— Pior. Anda querendo botar socialismo na fazenda. Surpreendi-o dizendo besteiras. Não liguei importância, tanto que o conservei, mas, o caso bem pensado, talvez fosse melhor arranjar para ele outra colocação, fora.
— E convidar a Madalena.
— Sim, estive pensando. Não sei. Se ela for moça de bons costumes.
— De bons costumes? Claro. O diabo é que talvez não aceite. Morar nas brenhas!
— Isso são bobagens da tia, uma velha tonta. Mas a outra, se tem juízo como você diz, aceita.
Azevedo Gondim mastigava amendoins torrados e bebia cerveja:
— É, pode ser. Vantagem para ela, com certeza, aumento de ordenado.
— Sem dúvida.
— Pode ser. Eu só tenho pena do pobre do Padilha.
— Não. Cavo uma colocação para ele. Já não lhe disse? É um canalha, coitado. E a respeito da moça...
— O senhor entendeu-se com ela?
— Não, homem. Se me tivesse entendido, não estava consultando você. Ó Gondim, faça-me um favor. Foi justamente para isso que lhe pedi que ficasse. Sonde a mulher.
Azevedo Gondim resistiu, encarecendo o serviço que ia prestar:
— Mas eu não tenho intimidade com ela. Fale o senhor.
— Impossível. Há dois dias que estou ausente. Preciso chegar a S. Bernardo hoje. E não sei a maneira de tratar com essa gente. Muitas voltas... Peite a moça, Gondim, faça-me o favor.
— Pois sim. Arrumo-lhe a paisagem, a poesia do campo, a simplicidade das almas. E se ela não se convencer, sapeco-lhe um bocado de patriotismo por cima.

SÃO BERNARDO GRACILIANO RAMOSOnde histórias criam vida. Descubra agora