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Naquele segundo ano houve dificuldades medonhas. Plantei mamona e algodão, mas a safra foi ruim, os preços baixos, vivi meses aperreado, vendendo macacos e fazendo das fraquezas forças para não ir ao fundo. Trabalhava danadamente, dormindo pouco, levantando-me às quatro da manhã, passando dias ao sol, à chuva, de facão, pistola e cartucheira, comendo nas horas de descanso um pedaço de bacalhau assado e um punhado de farinha. À noite, na rede, explicava pormenores do serviço a Casimiro Lopes. Ele acocorava-se na esteira e, apesar da fadiga, ouvia atento. Às vezes Tubarão ladrava lá fora e nós aguçávamos o ouvido.
     Uma feita distinguimos passos em redor da casa. Olhei por uma fresta na parede. A escuridão era grande, mas percebi um vulto. E as pisadas continuaram. O cachorro latiu e rosnou.
      - Mas esta! cochichou Casimiro Lopes.
      No dia seguinte visitei Mendonça, que me recebeu inquieto. Conversamos sobre tudo, especialmente sobre votos. Dirigi amabilidades às filhas dele, duas solteironas, e lamentei a morte da mulher, excelente pessoa, caridosa, amiga de servir, sim senhor. Mendonça, espantado, perguntou onde eu tinha visto d. Alexandrina.
      - Faz tempo. Fui morador do velho Salustiano. Arrastei a enxada, no eito.
      As moças acanharam-se, mas o pai achou que eu procedia com honestidade revelando francamente a minha origem. Depois queixou-se dos vizinhos (nenhum se dava com ele).
      - Há por aí umas pestes que principiaram como o senhor e arrotam importância. Trabalhar não é desonra. Mas se eu tivesse nascido na poeira, por que havia de negar?
      Tentou envergonhar-me:
      - Trabalhador alugado, hem? Não se incomode. O Fidélis, que hoje é senhor de engenho, e conceituado, furtou galinhas.
      Enquanto ele tesourava o próximo, observei-o. Pouco a pouco ia perdendo os sinais de inquietação que a minha presença lhe tinha trazido. Parecia à vontade catando os defeitos dos vizinhos e esquecido do resto do mundo, mas não sei se aquilo era tapeação. Eu me insinuava, discutindo eleições. É possível, porém, que não conseguisse enganá-lo convenientemente e que ele fizesse comigo o jogo que eu fazia com ele. Sendo assim, acho que representou bem, pois cheguei a capacitar-me de que ele não desconfiava de mim. Ou então quem representou bem fui eu, se o convenci de que tinha ido ali politicar. Se ele pensou isso, era doido. Provavelmente não pensou. Talvez tenha pensado depois de iludir-se e julgar que estava sendo sincero. Foi o que me sucedeu. Repetindo as mesmas palavras, os mesmos gestos, e ouvindo as mesmas histórias, acabei gostando do proprietário de Bom-Sucesso.
      Continuava a observá-lo, mas a observação era instintiva. Despertou. Bocejando, mostrando os caninos amarelos e pontudos, Mendonça bateu palmas e esfarelou um mosquito. Mosquito como bala! Tinha passado uma noite horrível.
      Respondi que havia dormido como pedra. Os pântanos em S. Bernardo estavam aterrados, não restava um mosquito para remédio. Arrependi-me de ter falado precipitadamente. Mendonça examinou-me de través, e suponho que não ficou satisfeito. Tornou a referir-se à noite de insônia, e eu repeti que tinha dormido. Pouco seguro, com a cara mexendo. Naturalmente ele compreendeu que era mentira.
      Cada um de nós mentiu estupidamente. Empurrei de novo na palestra a minha vida de trabalhador. Resultado medíocre: as moças cochilaram e Mendonça estirou o beiço.
      Um caboclo mal-encarado entrou na sala. Mendonça franziu a testa. Quis despedir-me; receei, porém, que o momento fosse impróprio e conservei-me sentado, esperando modificar a impressão desagradável que produzia. As moças me achavam maçador, evidentemente.
      - Se o inverno vindouro for como este, desgraça-se tudo: isto vira lama e não nasce um pé de mandioca.
      - Decerto, concordou Mendonça, visivelmente aporrinhado com o caboclo, que me olhava tranquilo, sem levantar a cabeça.
      - Pois até logo, exclamei de chofre. A eleição domingo, hem? Entendido. Mato um... (Ia dizer um boi. Moderei-me: todo o mundo sabia que eu tinha meia dúzia de eleitores) um carneiro. Um carneiro é bastante, não? Está direito. Até domingo.
      E saí, descontente. Creio que foi mais ou menos o que aconteceu. Não me lembro com precisão.
      Atravessei o pátio e entrei no atalho que ia ter a S. Bernardo. Que vergonha! Tomar a terra dos outros e deixá-la com aquelas veredas indecentes, cheias de camaleões, o mato batendo no rosto de quem passava!
      Percorri a zona da encrenca. A cerca ainda estava no ponto em que eu a tinha encontrado no ano anterior. Mendonça forcejava por avançar, mas continha-se; eu procurava alcançar os limites antigos, inutilmente. Discórdia séria só esta: um moleque de S. Bernardo fizera mal à filha do mestre de açúcar de Mendonça, e Mendonça, em consequência, metera o alicate no arame; mas eu havia consertado a cerca e arranjado o casamento do moleque com a cabrochinha.
       Dei uma vista no algodoal e encaminhei-me ao paredão do açude. Poucos trabalhadores.
       Subi a colina. Tinham-se concluído os alicerces desta nossa casa, as paredes começavam a elevar-se. De repente um tiro. Estremeci. Era na pedreira, que mestre Caetano escavava lentamente, com dois cavouqueiros. Outro tiro, ruim: pedra miúda voando.
      Quando se acabariam aqueles serviços moles? Desgraçadamente faltavam-me recursos para atacá-los firme. Assim mesmo, lidando com pessoal escasso, às vezes na sexta-feira eu não sabia onde buscar dinheiro para pagar as folhas no sábado.
       Fiz algumas perguntas ao pedreiro. Um pedreiro só. As paredes tinham um metro de altura. Se eu empregasse muitos operários, as obras sairiam mais baratas. O paredão do açude não ia para a frente, acuava. E a pedreira, onde uns vultos miudinhos se moviam, era como se em seis meses de trabalho não tivesse sido desfalcada.
       Um carro de bois passou lá embaixo; outro carro de bois veio vindo, carregado de tijolos.
       Onde andaria a velha Margarida? Seria bom encontrar a velha Margarida e trazê-la para S. Bernardo. Devia estar pegando um século, pobre da negra.
        Demorei-me até que os serventes lavaram as colheres e guardaram as ferramentas. Fiquei só. Os homens da lavoura e os do açude foram debandando também.
       Mais tiros na pedreira, os últimos. Pensei no Mendonça. Canalha. Do lado de cá da cerca o algodão pintava, a mamona crescia nos aceiros da roça; do lado de lá, sapé e espinho. Quantas braças de terra aquele malandro tinha furtado! Felizmente estávamos em paz. Aparentemente. De qualquer forma era-me necessário caminhar depressa.
       Desci a ladeira e fui jantar. Enquanto jantava, falei em voz baixa a Casimiro Lopes, a princípio com panos mornos, depois delineando um projeto. Casimiro Lopes desviou-se dos panos mornos e colaborou no projeto.
       Deixei o negócio entabulado, fechei as portas e escrevi algumas cartas aos bancos da capital e ao governador do Estado. Aos bancos solicitei empréstimos, ao governador comuniquei a instalação próxima de numerosas indústrias e pedi a dispensa de imposto sobre os maquinismos que importasse. A verdade é que os empréstimos eram improváveis e eu não imaginava a maneira de pagar os maquinismos. Mas havia-me habituado a considerá-los meio comprados.
       Em seguida consultei o Aprendizado Agrícola da Satuba relativamente à possível aquisição de um bezerro limosino.
       Quando ia terminando, ouvi pisadas em redor da casa. Levantei-me e olhei pela fresta. Lá estava um tipo dando estalos com os dedos, enganando o Tubarão. Reparando, julguei reconhecer o freguês carrancudo que tinha entrado na sala do Mendonça. Abandonei a espreita e chamei Casimiro Lopes, que me substituiu. Deitei-me pensando em mestre Caetano e na pedreira. Marretas, alavancas, aço para broca, pólvora, estopim.
       - Gente de lá, murmurou Casimiro Lopes balançando o punho da rede.
       - Com certeza.
       No outro dia, sábado, matei o carneiro para os eleitores. Domingo à tarde, de volta da eleição, Mendonça recebeu um tiro na costela mindinha e bateu as botas ali mesmo na estrada, perto de Bom-Sucesso. No lugar há hoje uma cruz com um braço de menos.
        Na hora do crime eu estava na cidade, conversando com o vigário a respeito da igreja que pretendia levantar em S. Bernardo. Para o futuro, se os negócios corressem bem.
       - Que horror! exclamou padre Silvestre quando chegou a notícia. Ele tinha inimigos?
       - Se tinha! Ora se tinha! Inimigo como carrapato. Vamos ao resto, padre Silvestre. Quanto custa um sino?

SÃO BERNARDO GRACILIANO RAMOSOnde histórias criam vida. Descubra agora