A faca abriu uma lacuna fina e irregular em meu antebraço, não me importei. Afundei um pouco mais a lâmina, saboreando a pequena fragmentação de dor que nascia no local, observando o estreito rio vermelho e frio deixar meu corpo e serpentear até a madeira velha, revestida por uma fina camada de neve.
O talho logo se refez: linhas finas, como teias, se uniram, recriando a velha pele morta.
- O que está fazendo? - Nicholas agarrou meu pequeno punhal e o balançou no ar para limpá-lo. - Você está louco? - sua voz de barítono ecoava no silêncio, tornando-o uma versão pouco menos assustadora do vilão de um filme.
Dei de ombros, alinhando-me um pouco mais à parede fria da velha cabana. Uni os joelhos e os pressionei contra o peito.
- Não - protestei, envolvendo-me um pouco mais -, a dor é boa, faz com que eu me sinta humano. Vivo! E não esse... Esse monstro - concluí, observando o local onde ainda deveria existir uma quantidade absurda de sangue.
Xingo baixo. Exausto. Frustrado.
O sangue que fragmenta o chão não é meu, saiu de mim, mas não é meu.
- Lamentável, Ace, la-men-tá-vel! - soletrou a palavra dando tempo de meio segundo para cada sílaba. Nicholas se sentou ao meu lado, observando a lâmina entre seus dedos e intercalando o olhar entre a neve manchada sob seus pés e meu rosto curvado para trás. - Já se passaram mais de um século e meio e você ainda não entende que não pode mudar isso?
Balancei a cabeça: nem negativa, nem positivamente.
Nicholas arfou profundamente, ponderando sobre meu movimento. Chutou a bruma para cobrir a mancha vermelha que eu deixara.
- Ora, rapaz, você precisa entender que é um vampiro agora - gesticulou para meu braço. - Não há como voltar atrás. Não há como retirar isso...
Apertei os olhos e pressionei a testa contra os joelhos. O silêncio não me disse nada.
Por mais que eu saiba que tudo o que Nick diz é verdade, prefiro fingir que a ciência evoluiu e pode tirar essa toxina do meu sangue, ou que um padre contém segredos em sua Bíblia que podem expulsar os demônios da minha alma. Que posso morrer - outra vez - e então ressuscitar humano, como eu costumava ser, com um sangue quente e meu, correndo em veias coloridas, com alma...
- Você não tem alma - cortou-me Nicholas, lendo minha mente.
Abri os olhos e ergui a cabeça ao ponto em que o rosto de Nicholas me fosse completamente visível.
- Você está morto - continuou, riscando a fachada com a ponta do punhal - como eu, como qualquer um de nós.
- Tentarei encontrar uma - seguro seu olhar por um segundo antes de ergue-me, em um pulo, acelerando meus passos, correndo para dentro da floresta.
Não há almas vagando por aí para que você possa simplesmente se apossar de uma - Nicholas continua em minha mente.
- Então eu invento uma - sorri, pulando uma rocha de quase três metros e caindo perfeitamente em pé, metros mais ao longe.
Já te disseram que você sonha alto de mais? - quase posso vê-lo sorrir. - Pois é verdade.
- Sai da minha mente! - infiltrei-me na mata escura, fazendo os poucos pássaros que não migraram, empoleirados em seus galhos altos, voarem espantados e os pequenos esquilos que procuravam suas nozes, para sobreviverem o resto do inverno, voltarem aos pulos para as árvores, causando um barulho imenso na paz noturna.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Primavera & Chocolate (livro um)
FantasyTudo o que Ace realmente quer é ser, novamente, mais um mortal. Entretanto, sendo impossível remover a imortalidade de seu corpo, ele vive na floresta, escondido dos humanos, observando, imitando e invejando-os, mas nunca sendo exatamente um deles...