Capítulo 4

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Os últimos dois dias passaram como uma tartaruga, rastejando lentamente, e estava frio o bastante para não haver nem mesmo almas perambulando as ruas de International Falls - o que sempre me rende alguns passeios pela cidade.

Debilmente - sem nem mesmo perceber - parei à poucos metros da porta dos fundos da casa do garoto e sua cachorrinha, Tesse. Fiquei encarando as vidraças das janelas e ouvindo o prazeroso silêncio imortal por tempo suficiente para que meus ombros fossem cobertos por camadas de neve e meus cílios, por uma fina película de gelo, que retirei com as costas das mãos.

O som oco dos meus passos afundando na neve é tudo o que ouço. Mais do que nunca, queria ser humano, apenas para implorar pelo sol do tão temido e esperado verão.

O que está fazendo aí? - a voz de Nicholas era baixa e calma, como se ele estivesse muito longe, em outro plano.

- Nada - eu disse, tentando bloquear todos os pensamentos, mas, provavelmente, ele já sabe de cada vírgula.

Volte para casa, Mister Congelado - brincou com nossa débil frieza. - Você vai virar um boneco de neve se ficar mais tempo por aí!

Eu apenas assenti, antes de ver movimentação na casa de Tesse e seu Líder da Alcatéia Imaginária. Estava longe e escuro de mais para que eu pudesse ver sem utilizar as "habilidades" vampirescas. E como eu não queria utilizar poder algum, me virei sentindo um terno cheiro de primavera adentrar meu corpo e tornar-me quase um zumbi, vagando e saboreando até que a brisa arrancou-me o tal e tão esquisito odor doce.

Caminhei até os pinheiros, outra vez, observando o lago meio congelado e o pequeno deck, na beira desse, quase desaparecer em meio à montes de neve - os humanos estão cada vez mais perto.

- Sabe Nick, você acha que os outros se sentem assim, como nós? - tentei alcançar sua mente, que, por alguma razão, estava demasiadamente longe.

Senti sua presença adentrar minha mente lotada, se espremendo entre pilhas infinitas de pensamentos frustrados e arquivos preenchidos de vazios.

Talvez, é difícil dizer. Mas, eu tenho certeza que... Alguns devem se cansar. Uma hora todos cansam da eternidade.

Observei meus coturnos altamente negros em meio a toda a palidez.

- É... Talvez - suspirei, recolocando o capuz e enfiando as mãos nos bolsos, tentando me tornar quente onde parece que nem um vulcão ativo suportaria.

Eu só queira entender porque você ainda vive aqui em International Falls, comigo, se seu coração é tão liberto - ele fez uma pausa, talvez esperando por algumas palavras minhas. Eu não tinha nada a dizer, não sabia o que falar. Esperei até sua voz voltar, firme, agora, talvez por conta da proximidade. - Não pense que estou te prendendo aqui, garoto. Pode ir viver uma vida de verdade, se quiser. Esse mundo obscuro dos vampiros certamente não combina com você.

Chutei a neve para o alto, e ela voltou em pequenos tufos.

- Eu realmente gosto dessa cidade, Nick. Você bem sabe - gesticulei para o nada, adentrando mais profundamente a floresta, com um pouco mais de velocidade.

Atravessei alguns bocados de árvores banhadas pela neve, escutando os pensamentos de Nicholas tentando continuar silenciosos.

Mas você é tão solitário aqui, tão, tão carente de alguém de sua idade, alguém que tenha os mesmos gostos por sangue do banco de sangue do hospital, tudo o que envolve essa música ruim e livros mentirosos sobre sua própria espécie, e sobre outras espécies, e esse tal de chocolate...

Pensei sobre aquilo, e então um vazio misturado a culpa me prenderam. Senti meu peito inflar e esvaziar, mas, certamente, era somente minha imaginação altamente carregada.

- Não preciso de ninguém, Nicholas Chester Griswold! Mesmo que você seja um velho caduco de pouco mais que meio milênio, gosto de você. Afinal, quem assará minha carne quando o sangue se tornar insosso? Quem fará meu chocolate quente e aquele biscoito com nozes para eu fingir que isso mata minha fome? - suspirei, sabia que ele já havia entendido, mas continuei, carente de sentimentalismo, falando e falando, mais e mais: - Quem vai reclamar quando eu roubar vinho da adega pois eu estaria com vontade de fingir que posso me afogar num pouco de álcool? Quem vai ligar o aquecedor para manter o inverno lá fora? Quem vai correr comigo para outro lugar, um bem frio, quando o sol chegar? Quem vai reclamar da música alta e dos cantores ruins? Quem vai me mandar parar quando estiver indo longe de mais? Quem vai me abraçar quando eu não tiver mais juízo...?

Cale a boca, Boneco de Neve! Eu já entendi, é feio fazer as pessoas chorarem, sabia? Venha já pra casa e não espere mais que um copo de seu leite vermelho! Estou ficando velho de mais para pesquisar receitas novas no Google e o chocolate está ficando caro!

- Então eu sugiro que seus cabelos brancos e as rugas apareçam logo, ou ninguém vai cair nessa sua ladainha de ser velho - sorri, chutando um pequeno pinho seco.

Não entendi porque, mas a voz de Nicholas parou de brotar em minha mente. E, novamente, eu estava ponderando sobre uma cura, sobre os humanos e sobre quão idiota eu devo parecer sorrindo enquanto palavras silenciosas voam de pensamentos alheios para minha cabeça.

Corri, ligeiramente, entre as árvores para então capotar, disperso de tudo aquilo, de uma só vez, no tapete indiano, quente e aconchegante, da biblioteca do Nick.

Primavera & Chocolate (livro um)Onde histórias criam vida. Descubra agora