O dia acabava em solidão, mais uma vez. Tudo que fizera além de olhar e conversar com flores, foi enterrar o pobre lobo, por mim, assassinado. Foi estranho ver meu mal ali, em minhas mãos, liberando seu cheiro almiscarado e lupino para o inverno irrelevante.
Quando entrei em casa, cheirando a lobo, sangue e morte, tudo o que Nicholas perguntou foi se eu queria sobremesa antes do jantar.
Essa era a deixa para eu começar a liberar meus grandes e lúridos problemas, sem que ele precisasse entrar em minha mente. Então nós comeriamos suspiros com morangos e chantilly, enquanto eu contava sobre o dia e o que me deixara mais triste que o habitual. Mas, eu não quis sobremesa. Nem permiti que Nicholas entrasse em minha mente.
Fui diretamente para o banheiro, e deixei a água quente fazer o que fosse preciso para tirar o cheiro pútrido da minha pele.
Depois de algum tempo em completo silêncio, tornou-se duro de mais ter que olhar para o mundo lá fora e não encontrar Brie andando furtivamente entre as árvores e citando seus versos sem rima para os galhos cheios de neve.
Hoje deve ser domingo — ou seria segunda? — Brie estaria em casa ou na casa de Gustav, cuidando do garotinho cujos pais largariam em quaisquer mãos que o aceitassem junto a alguns poucos dólares.
Me ergui do velho tapete indiano da biblioteca e andei pesadamente até a porta de entrada da casa. O vidro não esboçou meu reflexo.
Abri a porta.
Aqui fora o mundo parece morto, inerte sob as camadas infinitas de chantilly.
O que mortais fazem em tempos como esse? Vivem? Morrem de frio?
Peguei o casaco acolchoado, atrás da porta, e o vesti rapidamente sobre a camisa verde-água. Lentamente, me obriguei a andar sobre a neve, sentindo as pernas afundando. Corri.
Mesmo que eu odeie ser um demônio dependente de sangue humano para sobreviver, não há sensação melhor que a de sentir o vento brutalmente bater em seu rosto e pescoço, de modo que é possível sentir sua pele queimar pelo frio constante e presenciar o formigamento da sua própria pele se recriar para que não perca os dedos.
Quando International Falls recebeu a luminosidade dos postes e das casas, eu não parei, pelo contrário, acelerei um pouco mais meus passos até parar em frente às janelas fechadas da casa de Brie. O cheio de seu perfume parece tão intenso a ponto de esvair entre as mais finas brechas.
Olhei para o vazio ali dentro. É um quarto. Fotos de um casal se expõe sobre um dos criados-mudos, e há uma vela, a única luz do ambiente, bem em frente à essa foto, projetando sua luz dançante contra o vidro do porta-retrato.
O nariz da mulher sorridente e loira parece exatamente igual ao de Brie, assim como a forma como os cabelos se projetam para fora do gorro, meio ondulados, meio lisos, meio cacheados — uma verdadeira, porém bela, confusão.
O homem na fotografia sorri de modo a mostrar seus dentes extremamente brancos, seus cabelos desalinhados adornam um rosto quadrado e forte. Mas ele tem os olhos de Brie. Os mesmos olhos de cantos erguidos, tão... Vivos.
Esses devem ser Senhor e Senhora Mountain. Pais de Brie.
Em outro porta-retrato, de moldura dourada, sobre uma das estreitas prateleiras que sobem até bem perto do teto, como uma escada, há uma garotinha, segurando uma borboleta. Nenhuma das duas parece bem. Mas a borboleta está um pouco pior, uma das asas está quebrada. A garotinha não olha diretamente para a câmera, mas sim para algo ou alguém atrás da câmera, algo ou alguém que a fez dúvidar de si mesma, a fezendo transitar entre sorrir para quem tira a foto ou chorar pela borboleta machucada, dando à garotinha uma expressão única.
Reconheceria aquelas bochechas carregadas pelo rubor da vida em qualquer lugar, mesmo seus cabelos estando tão cacheados. A garotinha é Brie, talvez aos oito ou nove anos.
Vendo-a assim, banhada pela luz do sol, não seria capaz de lembrar de tê-la visto pelas ruas de International Falls, muito menos quando criança. Entretanto, as fotos seguintes me fizeram lembrar de seus pequenos olhos extasiados na escuridão. Encarando-me exatamente aqui, perseguindo minhas pegadas na neve e convidando-me para chegar um pouco mais perto. Ela sorriu quando eu fiz torvelinhos com o ar. Ameacei jogar uma bola de neve contra o vidro, mas alguma coisa, dentro ou fora dela, não deixava que sentisse medo. A garotinha colou as mãos no vidro úmido e em seguida escreveu alguma coisa com os dedos:
Oi, sou Brie. Qu...
Sua mãe acendeu a luz do quarto e andou até onde a filha estava. Por dez segundos a mãe da garotinha encarou o lugar onde eu estava meio segundo atrás. Um garoto entrou no quarto e apontou para o chão, para minhas pegadas profundas. Ninguém prestou atenção nele. Brie se defendeu choramingando em meio a seus "mais..." e "é verdade" enquanto eu os observava fechar as cortinas e concordarem que só era uma sombra ou um maluco tentando aparecer.
Quem diria, sua mãe estaria realmente correta: era apenas um maluco tentando aparecer, tentando parecer algo mais que somente um maluco.
Rodiei a casa, encarando cada janela, cada comodo, vivendo um pouco da vida de Brie através das fotografias e a maneira como os móveis estavam postos.
A parede da sala de jantar tem rabiscos e anotações, comprovando o crescimento da Senhorita Mountain e de alguém chamado Billie ao longo dos anos. A última marcação era de 2009, mas não havia indícios de quantos centímetros Brie havia crescido desde 2008, nem qual sua altura, havia apenas um fino e solitário traço, feito com canetinha colorida num tom impossível de amarelo, e sua idade – dez anos. Há uma marcação bem no alto: 1,82 (2014). Fui embora. Billie.
Engoli seco.
Parei, enfim, na porta dos fundos, a tela escura estava encostada, presa com uma estueta em firma de uma maçã azul. Através do vidro, vi um homem sentado numa poltrona, no escuro. Parecia inerte numa torrente de lembranças, os ombros tensos, os olhos fixos na parede a sua frente. Estiquei-me um pouco para o lado e notei o que ele estava vislumbrando: uma bonita foto da mesma mulher loira e sorridente – a mãe de Brie, e talvez sua esposa. Sua expressão é semelhante a de vovô Bern quando eu finalmente pude sair do interno – eu tinha quatorze anos mortais. Ele me levou para sua casa, me deu biscoitos e suco de maçã, disse que era difícil viver sozinho e que papai era um verme por ter obrigado-me a residir em um internato enquanto que alguém poderia cuidar muito bem de mim. Depois de algumas horas de reclamações, vovô ficou ali, sentado em sua velha cadeira acolchoada de couro, inerte em lembranças, pensando e repensando no que ele poderia ter feito para salvar a linda mulher tatuada no velho e lívido quatro pende à parede suja de mais para ser branca.
Talvez aquele homem na casa de Brie esteja pensando a mesma coisa que vovô, ou talvez esteja apenas contemplando a beleza daquela mulher.
Virei-me para partir, mas vi que, sentada em um balanço de pneu, uma garota se balança tristemente. O cheiro inconfundível de primavera e Chocolate dando um pouco de vida ao inverno.
De costas para mim, Brie parece uma representação feminina e mais jovem do homem dentro da casa. Os ombros tensos, o pescoço levemente arqueado. Me pergunto o eles pensam quando se sentem assim, e o que eles pensam quando estão "normais". É somente tristeza? Ou há fragmentos da felicidade captada naquelas fotografias?
Andei silenciosamente para perto de Brie. Um nome diferente tal qual a garota que o carrega. Que soa vazio, como se retraísse cada pequeno significado que se pode agregar a ele e talvez seu significado seja até mesmo feliz, mas não me dizia feliz.
Procurei por Brie nos arquivos da minha mente. Há muito, Nicholas me ensinou alguns significados, quando não tinha nada melhor para fazer...
Brie: terreno pantanoso.
Não é feliz.
– Eu sei que é você pai – sua voz soou triste.
– Não é seu pai – sorri soturno, sentindo o sorriso mais em um lado que do outro nos lábios.
Brie girou o balanço até conseguir me ver. Por algum motivo, seus ombros se tornaram mais tensos e seus olhos, vazios. Essa não era a expressão que eu pretendia encontrar.
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Primavera & Chocolate (livro um)
FantasyTudo o que Ace realmente quer é ser, novamente, mais um mortal. Entretanto, sendo impossível remover a imortalidade de seu corpo, ele vive na floresta, escondido dos humanos, observando, imitando e invejando-os, mas nunca sendo exatamente um deles...