Capítulo 32

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Andamos furtivamente até sua casa. Brie tremia, não sei se de frio ou de nervosismo — quem sabe por ambos.

Vagarosamente, ela abriu a porta dos fundos, com um dedo sobre os lábios para me impedir de falar. Fora um gesto tão sexy e gracioso que não me veio nada à mente para opinar.

Quando passamos pela pequena sala de jantar, senti o cheiro forte da bebida na toalha de mesa e no tapete. Marcas de sangue nas paredes me deixaram atônito e fui obrigado a parar.

Com a mão sobre o nariz fechei os olhos e tentei imaginar esse sangue em um animal. Como é horrível despertar de si mesmo e saber que você matou um ser que não merecia isso, que tinha uma vida pela qual viver e você acabou com ela para continuar a sua. Isso é a única coisa que consegue amenizar a cede: o enjôo e a culpa.

— Está tudo bem? — Brie segurou meu braço ao sussurrar. Sua voz tão perto do meu ouvido me fez pender para frente e para trás. Ela não havia notado o sangue.

— Sangue... — grunhi. A imagem do animal não parece estar adiantando. Vasculhei minha mente tentando encontrar o arquivo “Nicholas”, mas não consegui. Cada gaveta que eu abria estava cheia de um novo sangue. Vermelho. Insosso. Doce. Amargo. Humano. Infectado. Escorrendo pelas bases dos armários. Sujando o chão do meu cérebro, transbordando até minhas próprias bases. Senti minhas botas encharcadas... Movi as pernas inconscientemente.

O cheiro de Brie me fez transitar entre cada uma das cenas. Eu estava em sua sala de jantar. Ela estava alguns centímetros à minha frente. Eu estava no vazio. O sangue escorria de minhas próprias mãos. Então eu estava na sala de jantar outra vez.

— Onde? — senti o peso de seu corpo rodopiando pela sala. E eu voltei ao sangue. — Achei! Ah... Espera um pouco.

O cheiro de produtos de limpeza inundou a sala. Num segundo não havia mais sangue, nem nas paredes, nem no ar, muito menos em minha mente.

Sorri quando enfim voltei a abrir os olhos, piscando para afastar os traços amarelos. Não sabia que seria tão difícil só acompanhar.

— Vem — ela segurou minha mão com seus dedos revestidos com luvas de algodão e couro. Mal sabia que em minha mente, por um momento, ela virou minha presa e eu aquele lobo cinzento, faminto. — Vou levar isso caso... Caso ainda haja sangue.

Ainda haja sangue? Óbvio que iria ter mais sangue! Afinal aquela era uma casa com um bêbado ferido dominado pelos espectros do passado, da perda, da morte. Óbvio que haverá sangue. Muito sangue. Mas tudo foi preenchido com o cheio de água sanitária e álcool. Até mesmo o cheiro da morte não resistiu à toda aquela química.

— Papai? — Brie movimentou algumas cortinas esfarrapadas e cuidadosamente desviou-se de cacos de vidro.

O estado da sala era ainda pior: fotos amassadas, whisky e pequeninas estátuas de gesso cobrem o chão como uma atualização moderna de um tapete. As almofadas estão todas espalhadas e mal cheirosas, uma namoradeira, que pertencia ao hall, projeta-se entre um cômodo e outro, como uma barreira. A poltrona onde Dwayne estava sentado quando o vi, está bem no centro da sala, como antes, voltada para a foto de sua amada falecida. Na moldura, marcas de dedos ensanguentados foram rapidamente limpas por Brie.

Viramos uma esquina e um corredor se estendeu com portas dos dois lados do comprimento.

— Pai? — Brie sussurrou abrindo uma porta e fazendo novamente aquele gesto gracioso que claramente diz:“fique com a boca fechada”.

O pai lhe respondeu com um grunhido preguiçoso.

— Tudo bem aí?

— Vá embora — sua voz estava avidamente alterada, repleta de nuances de sua embriagues —, você não pode me ver assim.

— Ele está chorando — sussurrei no ouvido dela.

Brie virou as costas para a porta e me olhou. Eu não sei o que há naqueles olhos, nem em todo o rosto e corpo dela, mas sei que me preenche também, me inundando desse sei lá o quê que ela tem. Esse quê de honestidade que ela usa comigo e não com ela mesma... Pisquei. Me obrigo a piscar quando ela está a minha frente só para comprovar se não é uma visão, um sonho. Feliz ou infelizmente, ela é real.

Virando-se, enfim, ela abriu a porta, mas se manteve ali parada. Absorta na imagem de seu pai sentado na cama, olhando fixamente para o chão. Sangue empapava os lençois, garrafas de whisky e o cheiro azedo de vômito inundaram-nos no mesmo instante.

Brie me olhou por sobre o ombro, alarmada, me entregando o recipiente de água sanitária.

— Cheire isso até estar tudo bem — ordenou ela, dando um passo à frente, adentrando aquele verdadeiro quarto do pânico.

Ergui o vazo de água sanitária até atingir o nariz, o odor químico me deixou zonzo mas insisti em entrar no quarto também.

Sem que seu pai pudesse me notar, dei a volta na cama e me encostei na parede, inalando o mal cheiro de ambos os produtos espalhados pelo quarto. Fiquei ali, à penumbra, observando Brie limpar o corte na palma da mão esquerda de Dwayne. Tentando não pirar com todo aquele sangue. Resistindo o máximo que pude. Dwayne choramingou quando sua filha regou suas mãos e braços com álcool. E eu finalmente pude respirar algo menos mal cheiroso que água sanitária.

— Vá embora — ele sussurrou tais palavras diversas vezes.

— Não pai, não vou sair.

— Preciso ficar só... Só ela e eu — disse Dwayne, levando uma mão ao ar como se de fato houvesse alguém ali.

— Shhh, vem, vamos limpar essas roupas — ela se ergeu e ajudou o pai a se levantar, também.

Dwayne andou trôpego até a porta e seguiu andando, enquanto Brie me lançava um olhar de aviso e agradecimento.

— Obrigada — sussurrou baixo o suficiente para seu pai não ouvir.

E essa foi a deixa para eu escapar pela madrugada morta e resolver quaisquer que sejam esses problemas em minha mente.

Primavera & Chocolate (livro um)Onde histórias criam vida. Descubra agora