Acompanhei a garota - dez metros afastado, escondido atrás das árvores e arbustos no caminho.
Ela retirou um livro da sua mochila, tão negra quanto carvão, e acendeu a lanterna de seu celular, depositando toda a sua atenção às páginas, lendo em voz alta trechos do que parece um conto antigo, suspirando a cada vez que não entendia algo, ou que não conseguia ver, chutando bolas de neve no caminho.
Parecia um bolo de decepção, agonia e medo flamejantes.
- Mas, querido, nunca irei entendê-lo se não me disser o que sente - ela choramingou, gesticulando para uma casa mais ao longe. - É. Nunca serei capaz de fazer isso - fechou o livro e o jogou ao ar. Este caiu três metros atrás dela, quase desaparecendo sob a neve.
Me apressei para pegá-lo e observei as linhas de um roteiro.
Logo senti quando seus sentidos tardaram e ela pulou para trás para pegar seu script. Por sorte - e pela velocidade natural dos vampiros - eu já não estava mais lá.
- Como tiveram a coragem de me jogar no meio disso? Que... porcaria! - ela sacudiu as páginas no ar, para limpá-las.
Respirou fundo, cansada de tudo aquilo. O cheiro de seu sangue explodiu no vazio insípido.
- E ainda tenho que atuar por que... blá, blá, blá... todos atuam, blá, blá, blá... "Você se sairá muito bem, acredite em mim"... Blá, blá, blá! - ela iniciou um debate consigo mesma, gesticulando, fazendo sinal de "fale com a minha mão". Seu corpo parecendo tão tenso, uma bola de fogo no meio de uma nevasca. - Droga. Nem sequer consigo pensar em coisa pior que "droga".
Houve uma pausa e eu realmente imaginei que ela estivesse definhando. A respiração pesada e alta o suficiente para eu ouvir sem a "super-audição", inundou a noite.
- Em que Marie estaca pensando ao informar o mundo que eu escrevo? Ora, eu não escrevo! Eu invento qualquer porcaria e...
Ela estava próximo de mais de um punhado de casas para continuar falando alto e xingando daquele jeito.
- Ainda preciso ser babá, à noite - parou por meio minuto antes de explodir de uma só vez, como milhões de dinamites: - PORQUE? Será que existe alguém no mundo que possa me dizer o que eu fiz para merecem tudo isso em uma única vida? - uma vez que não reteve respostas, a garota respirou fundo, e outra vez, sorveu o ar como se fosse um pedaço insosso de um bolo mal feito, depois o cuspiu fora.
Seus ombros se curvaram um pouco mais.
Ela continuou:
- Se essa pessoa tão inteligente existir, por favor, me responda! Tudo o que preciso é dessa resposta.
Coloquei a mão sobre os lábios para não deixar escapar os ruídos da gargalhada que lambuza minha garganta.
Ela deu um meio passo, uma mão jogada ao lado do corpo segura o scrip, e a outra foi devolvida à um dos bolsos de trás de seu jeans. A garota jogou a cabeça para trás, por um instante, e sentiu os flocos brancos caírem em seu rosto.
Contemplei seu majestoso e infantil gesto. Se eu não estivesse tão absorto em seu corpo levemente curvado, em sua forma tensa e doce - apesar da explosão -, eu poderia até mesmo imitar aquela garota e todo aquele comportamento ficcional.
- Calma, calma - ela disse para si mesma, afundando a cabeça no roteiro, que foi levado até o rosto. E, então, se endireitando, continuou: - Você vai conseguir, claro que vai conseguir. Eu sei que vai. É isso que todos esperam. É isso que todos terão!
Admirei seu impasse solitário.
- Então, Senhorita Mountain, vamos fingir que somos uma garotinha calma e feliz? - ela fez sua voz se tornar calma e grave. Falava tão baixo que eu dei alguns passos até lembrar que poderia ouví-la mesmo em maior distância. - Claro, senhorita Mountain, pois o mundo gosta de garotas normais, calmas e felizes - sua voz agora é aguda e enjoativa. - E, oh, ele realmente precisa pensar que somos normais, não é? Claro que é! Agora ande... Você não vai chegar na casa dos Callaghan se continuar falando sozinha feito uma maluca. Pelo menos não hoje.
Não consegui não sorrir, explodi numa risada - alta de mais, por sinal.
Previ que ela olharia para trás, então consegui me embrenhar entre alguns dos pinheiros que ainda sobraram no grande espaço entre as casas com seu tom avermelhado de marrom e cinza.
Ela seguiu meu movimento com os olhos arregalados.
Eu realmente queria que os livros estivessem corretos e eu pudesse ler a mente humana, mas não posso. Então apenas utilizei, por um incrível milagre, o que o Superman chamaria de "super visão" e "super audição", para vê-la e ouví-la chamar em desespero por mim:
- Quem está aí? - ela está assustada, segurando seu pequeno roteiro pálido bem apertado contra o peito. Sinto-me enojado por tê-la deixado assim. - Eu sei que tem alguém aí, então apareça! Drake, se for você, saiba que vou te matar! - seu coração deu batidas frenéticas enquanto todo o resto do corpo mantém-se em silêncio, apertando os olhos para tentar ver algo na escuridão. - Oh droga, estou pirando de verdade! Culpa dessa professora chata de teatro. Argh!
Por sorte, havia um gato nos arredores, e eu o aticei à brincar com uma pequena folha à alguns metros de distância da Senhorita... - Como ela se chamou, mesmo? Ah, é - "Mountain".
Ela suspirou. Alívio e frustração e mais alívio correndo por seu rosto e corpo como se fossem um novo sangue congestionado em suas veias.
Eu também suspirei, acenando para o gato, esperando, extasiado, por seu aceno de resposta. Obviamente isso não aconteceu.
- Ora, é só um gato, um pequeno gatinho - balançou a cabeça, sorrindo boba e aliviada. - Adeus gatinho.
Ela fez um aceno engraçado, misturado a uma espécie de reverência e se virou para continuar seu caminho.
Por segurança - contra um perigo que eu supostamente inventei -, acompanhei a garota, de longe, até ela rodear as casas e sumir dentro de alguma das quais eu não posso me aproximar.
Então voltei para meu solitário chalé no meio da floresta. As mãos nos bolsos, o olhar perdido e o pensamento na menina que cheira a primavera. Aquele lúdico bate-papo com o vento parece me envenenar, como uma droga, uma droga alucinógena que não me deixa parar de rir.
Por toda a noite, por mais que eu balance a cabeça, pregue os olhos no velho programa de TV ou tentasse pôr toda a minha atenção sobre as páginas de um livro considerado super interessante pelos críticos, e por Nicholas, seu rosto sempre toma todos os meus sentidos e pensamentos. É como se eu realmente estivesse... entorpecido.
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Primavera & Chocolate (livro um)
FantasyTudo o que Ace realmente quer é ser, novamente, mais um mortal. Entretanto, sendo impossível remover a imortalidade de seu corpo, ele vive na floresta, escondido dos humanos, observando, imitando e invejando-os, mas nunca sendo exatamente um deles...