Paramos em frente ao Rainer Lake Medical Center – uma construção grande e branca, com grandes portas de vidro, típico de um hospital.
Nicholas estacionou na vaga mais próxima a lateral do centro médico e, antes de se levantar rapidamente, pôs um boné e óculos escuros – mesmo não havendo qualquer lembrança de que um dia o sol visitara o céu de Minessota – o que deixou Nick com a cara de um policial de alguma série televisiva. Pacientemente, preferi ficar no calor do interior do Maserati.
Olhando para os lados, como se só estivesse admirando os montes de neve, que chegam a alcançar a altura de suas coxas, Nick se encaminhou para uma porta lateral e adentrou o local sem levantar quaisquer suspeitas.
Nunca fui muito fã de hospitais. Quando eu era apenas um garotinho – não um adolescente por tempo indeterminado –, hospitais não eram os locais mais calmos e limpos do mundo. Tudo era uma zona de guerra: pessoas ensanguentadas, gritando, bebês chorando, velhos andando como zumbis moribundos reclamando da dor na lombar, do curativo solto, do sangue que não para de sair da ferida aberta. Tantos outros doentes enrolados em ataduras se amontoavam em bancos. Cheiro de sangue, pomada, iodo e álcool eram predominantes. Gritos e choramingos eram os sons que nos embalavam. Os leitos eram limpos com produtos mal cheirosos e os lençois, bem, nem sempre haviam lençois. É. Talvez não seja tão diferente de alguns hospitais superlotados de hoje.
Eu tinha cinco anos, acho, quando entrei no hospital mais próximo a Brighton. Por alguma razão as águas daquela praia trouxeram-me uma incessante coceira. Mamãe, preocupada de mais, me ergueu em seus braços e gritou para qualquer um que tivesse um veículo, qualquer que fosse, para nos levar à seu médico, Doutor Franklin Burton.
Após esperar por quase duas horas, numa fila sem início nem fim, Burton sorriu para mamãe, alisou meus cabelos e me recomendou uma pomada fedorenta, e só. Perdemos o restante da tarde, perdemos a praia, o dia de sol... Mas garantimos alguns risinhos do vovô Bern que não parava de cantarolar Aaro e as pulgas na cueca. HA-HA! Só para irritar.
Vinte e três minutos depois, Nicholas surgiu na lateral ampla do Rainer Lake. Três caixas de isopor cuidadosamente empilhadas sobre seus braços cheios de músculos. A propósito, quando Nick tem malhado? Enquanto faz bolos?
Já tentou bater claras em neve sem o auxílio de uma batedeira? É um baita exercício, Floquinho – entoou em minha mente, sussurrando baixo, quase como um choramingo.
– Ótimo, preciso tentar isso um dia; estou muito fora de forma – tentei fazer uma piada. Nicholas sorriu sugestivamente e apontou para os fundos do Maserati com o cotovelo.
Entendido o “sinal do cotovelo”, desativei a trava do porta-malas.
Deveria mesmo. Você está tão magro quanto um frango abatido – ouvi o som das caixas raspando umas contra as outras enquanto Nicholas as arrumava.
Olhei para meus braços. Assim, cobertos por camadas infinitas de tecidos, eles não parecem finos como Nick sugeriu.
– Não estou parecendo um frango! – reclamei em tom de advertência.
– E como está – Nick abriu a porta do carro e ficou ali, em pé, por dois segundos, analisando-me atenciosamente. – Falta carne aí – apontou para minha barriga antes de sentar-se. Completou: – e substância. Muita, muita substância.
Com substância ele quer dizer sangue humano. Eu necessito de sangue. Quanto tempo não bebo sangue? Quanto tempo não me alimento nem mesmo da comida comum?
– Faz um bom tempo – Nick respondeu aos meus pensamentos, manobrando o carro para sairmos do estacionamento. Ele ainda usava os óculos e boné. – A última vez que te vi beber substância foi a... Sete dias? Dez?
Acenou para alguém no carro que pretendia ocupar a vaga que ele disponibilizou.
– A propósito, já que saímos, vamos passar em algum supermercado e no posto de gasolina. Esse cara aqui precisa de uma boa bebida – Nick deu batidinhas no volante. Deduzi que o "cara" citado é, na verdade, o carro.
Analisei as ruas em nosso novo trajeto. Todas parecem exatamente iguais: não muito amplas, com casas parecidas dos dois lados, pinheiros ocupando o espaço entre as casas, neve. É como se estivéssemos andando em círculos – a não ser pelos cheiros.
Cada casa possui um cheiro diferente: a primeira casa tem cheiro de madeira queimando e marshmallows tostados, a da esquerda, bolo recém tirado do forno e perfume francês. Aquela ali no meio? Pullovers novos, chulé, xampu e espuma para barbear. Já a mais distante cheira a biscoitos de polvilho e leite; a do canto direito fede à bacon queimado, panquecas e mel. Uma inundação de odores.
Alguns minutos depois, estávamos numa estrada adornada por grandes pinheiros revestidos de camadas brancas e indestrutíveis de neve. A melhor vista. Será que, se eu começar a andar para o outro lado, assim que sair de casa, eu chego aqui? No vazio preenchido de árvores e dividido por uma estrada?
Por fim, Nicholas parou no posto de gasolina e encheu o tanque. Depois fomos à um Walmart em Ranier – o qual eu não entrei.
No fim de noite, voltamos para International Falls com o porta-malas cheirando a sangue e os bancos de trás revestidos por camadas de sacolas plásticas cheias de industrializados. Nicholas havia tirado os óculos e o boné e dirigia cheio de disposição para encarar as mesmas ruas novamente, como se tivesse acabado de entrar no carro. O rádio cantarolava baixinho uma canção portuguesa, na voz serena de uma mulher que parecia querer me fazer dormir. Nick batia o dedo no volante de acordo com os acordes da música.
Encontrei uma caixa de barras Snickers e comi algumas.
Quando chegamos no ponto de International Falls onde os caminhões que retiram a neve não retiraram a neve, Nicolas levou as caixas de isopor e eu sobrecarreguei meus braços de sacolas.
Rapidamente, deixei as sacolas em casa e voltei para buscar o restante.
– São as últimas? – Nicholas perguntou, parando-me na entrada de casa.
– Sim – disse, soltando as sacolas ali mesmo.
– Preciso guardar o carro – disse ele tocando-me o ombro, e PUF!, sumiu.
Após todo um dia vivendo como um simples mortal, abastecendo o tanque, fazendo compras, visitando outra cidade, estou eu aqui, novamente, sozinho, solitário, em minha cabana provisória. Vi os olhos de Brie nas escadas que levam para o sótão, vi suas mãos tentando alcançar meus cabelos e as pontas quente dos seus dedos pinicando-me os pulsos. Vi seu rosto. Ela disse Não há ninguém. Derek sorriu. Derek. Sorriu – as vezes não gosto dessas palavras juntas. E, bem antes de perceber meus olhos rasos de lágrimas, chorei.
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Primavera & Chocolate (livro um)
FantasyTudo o que Ace realmente quer é ser, novamente, mais um mortal. Entretanto, sendo impossível remover a imortalidade de seu corpo, ele vive na floresta, escondido dos humanos, observando, imitando e invejando-os, mas nunca sendo exatamente um deles...