Capítulo 37

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A neve não cai. Os flocos não aderem ao chão. O chão não adere os flocos. Os meus pensamentos são dispersos, invisíveis, inexistentes à medida que os pés, meus próprios pés, surgem em desalinho na minha mente, à minha frente. Mas eu fui a seu encontro mesmo assim.

A neve está sempre em cada ponto do caminho percorrido. Sobre as árvores, nos ganhos nus, dos mais altos aos mais baixos. Neve sobre as pedras, em baixo delas, nos cantos — não me imprecionaria se, ao abrir uma rocha, encontrasse gelo ali também. Neve pisada, plisada, virgem, abusada, marcada, jogada, ignorada... O mundo branco de neve de todos os tipos. Desde a neve branca a neve ainda mais branca.

Andava humanamente, com saltos vampirescos e a respiração de um animal empalhado. Meus dedos não estão revestidos por luvas ou nenhum tecido, e os meus próprios tecidos não se regeneram tão rápido quanto antes para retomar os fios que congelam e mudam para roxo. É como se o vampiro em mim estivesse se descascando; a casca revelando uma lagarta, não a borboleta.

Eu tinha asas quando vampiro.

Eu ganhei asas e pedi para serem arrancadas.

Eu mesmo tentei arrancá-las.

Não consegui.

Por um segundo, um único segundo, alegrei-me por não ter conseguido reverter o processo e voltar a ser somente humano, por não consegui arrancar as asas.

Eu seria um humano tolo, vivendo de um modo tolo. Não teria amigos, não conheceria os vizinhos. Minha casa seria em uma rua quase deserta. Talvez em Londres, onde cresci, mas nunca conheci, ou talvez em qualquer outro lugar.

Entrementes, percebi que, se eu fosse um homem — apenas homem; não vampiro; nenhuma mísera célula vampiro — talvez não passasse de um cadáver velho incrustado na terra.

Talvez teria morrido na guerra.

Em qual delas?

Eu seria uma folha seca no chão rochoso.

Seria insignificante.

Ora. Seria quase o que sou agora.

Parei por um segundo e olhei para cima, para o céu, o típico céu invernal, o mesmo céu que vejo a cento e sessenta e três anos. É sempre a mesma cartela de cores vazias, variando diversas vezes entre cinza-não-consigo-respirar e cinza-quase-sem-vida. À noite, as nuvens não permitem que o céu seja visto em sua negritude noturna, então o revestem com camadas do famoso cinza-morto.

Ela talvez não pensasse assim.

Humanos talvez nunca se perguntem o que seriam se não fossem humanos. Ou será que pensam? Se pensam, o que será que pensam? Que seriam fortes e velozes, mas aparentemente normais, como o Superman, ou demônios pálidos, sedentos e anti-sociais com crises de bipolaridade?

Força e velocidade, sem sede nem crise, seriam uma experiência muito boa para um ego juvenil.

Voltei a andar e a considerar, se aquela migalha de alegria que havia liberado a mais ou menos vinte segundos atrás, deveria ter cursado uma linha ligeiramente curva de modo a levar um dos cantos dos meus lábios para cima.

Casas se permitiram ser vistas, vermelhas, entre ruas pálidas.

As casas mais próximas de mim parecem soterradas, as mais distantes aparentemente receberam a visita dos garotos vizinhos que pensaram em ganhar uma grana retirando neve.

Que dia é hoje? Eu levantei mesmo um dia depois de ter enlouquecido por uma mortal? Ou sonhei que os dias eram horas? Que tolice. A tarde não parece a tarde, parece um dia perdido no tempo, na brancura do vazio preenchido. Um dia. Não o dia depois de ontem. Um dia qualquer que alguém apontou no calendário e disse Voilá! É esse dia que vou viver hoje. E viveu.

Primavera & Chocolate (livro um)Onde histórias criam vida. Descubra agora