Capítulo 25

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Não entendi a animação em sua voz.

— Você não é humano, Ace.

— Não? — engoli seco.

— Não!

Minha mente se transformou num enorme buraco negro, engolindo a si mesmo no vazio eterno. Não sei o que dizer, nem o que pensar, muito menos como agir. E encarar os olhos brilhantes e envolventes de Brie só dificultam mais as coisas, deixando meus pensamentos um pouco mais... Inexistentes.

— Yeah, você é mesmo um demônio, Ace? — Senhorita Mountain tentava ficar seria, mas a alegria de sua descoberta assombram seus lábios de tal maneira, que ela sorri por milésimos e fica seria por meio segundo, então sorri novamente.

Sou...

Sussurrei para mim mesmo, sua mente, uma sala cósmica, verde com linhas que piscam em branco e prateado, está vazia para mim.

— A-Ace?

— Sou — sussurrei, ela me ouviu, e notou minha voz embargada no turbilhão de pensamentos que de repente explodiu em minha cabeça. O que era um redemoinho, sugando tudo para si, transformou-se em um universo cheio de perguntas brilhantes e suposições frustrantes rodopiando no escuro.

Fitei o chão sob meus pés.

Como um simples toque pode revelar uma natureza interminável? Como ela simplesmente sabia? Ela é um vampiro também? Não, não pode ser. Ela é um outro ser? Sim, claro, ela é uma humana, uma humana inteligente! Lembra que você a salvou de um lobo, idiota? Isso entrega completamente tudo. Ah é.

— Estraguei alguma coisa, não foi? — sua voz agora não passa de um rádio velho movido a pilhas fracas.

Como ela pode estar se preocupando em estragar alguma coisa? Ela acabou de descobrir que fala com demônios!

— Não, não, quer dizer, sim — meus membros tremem como se o frio estivesse se realocando para meus ossos. — Na verdade, estragou tudo — sorri um tanto débil.

— Desculpe, eu não queria... Porque sempre estrago tudo — não foi uma pergunta, isso me fez erguer os olhos novamente para ela.

Brie é uma estátua de tensão, parada ali, olhando para o nada branco a sua frente.

Sua descoberta passou a não importar tanto assim. É como se ela sempre soubesse.

A cidade aparece entre as coníferas como pequenos pontinhos vermelho-areia e grafite banhados por um gorducho lençol branco e felpudo, cheio de irregularidades pelo corpo de casas e lojas.

— É uma bela vista, não? — falei aproximando-me de Brie, ainda receoso por deixá-la me tocar.

— Ééé... — foi o modo como ela respondeu, uma tentativa falha de fazer sua voz ecoar. Na verdade sua voz espumou num lago quente: a espuma foi se dissolvendo rápido até não sombrar nem sinal de que um dia existiu uma simples bolha.

— Não é sua culpa ser observadora e notar que havia algo de... cavernoso em mim — queria tocar seus ombros e então virá-la para mim e abraçá-la até que ela não se preocupasse mais com isso. Mas sinto que acabaria por tornar aquilo, o abraço, extremamente doloroso.

— Não há nada de cavernoso em você. Há uma certa palidez exagerada e... Não há nada de cavernoso em você — ela ainda continua olhando para a cidade se dissolvendo em névoa muitos quilômetros a frente.

Como ela pode não sentir medo?

— Então? Como você descobriu? — essa pareceu uma pergunta tola, eu sei exatamente como ela descobriu.

— Você tinha olhos vermelhos quando correu da casa do Gustav, você me olhou por entre os dedos e correu... Era um flash negro no vazio branco. — Ora, não foi exatamente isso que pensei que ela diria. — Primeiro pensei que era apenas minha imaginação, que eu talvez estivesse lendo muita ficção e estava tentando atribuir um conceito a você, que não passava de um desconhecido — ela sorriu, virando lentamente seu rosto para mim. Esse simples gesto foi o bastante para me roubar qualquer possibilidade que eu tivesse na vida de respirar outra vez. — Mas, então veio o lobo. Eu sentia tanto medo e... Aí você apareceu no momento exato, vindo de lugar nenhum, ou de qualquer lugar... — respirou fundo, inflando e esvaziando o peito, sonoramente.

Seu rosto é tão graciosamente calmo, vendo que ela está cara a cara com um possível Serial Killer imortal que bebe o sangue do que mata, eu tive mesmo medo de chorar.

— Ninguém nunca havia me salvado antes, muito menos daquela forma. Mas, antes disso, antes de você me salvar, antes mesmo de eu ter imaginado bilhões de coisas, você enfrentou o Derek sem nem mesmo saber quem era, apenas para livrar-me dele — seus olhos encontraram os meus, seus dedos desceram no ar até tocar as pontas das minhas luvas de couro. Sorriu ao lembrar-se que não era frio, que não era minha pele. — Por que fez aquilo? Por que enfrentou o Derek?

O Derek? Ótimo.

Senti que minha mente iria se tornar um buraco de minhoca, mas respondi antes que qualquer coisa pudesse me parar:

— Eu, simplesmente, fiz. Foi como... Eu não sei. Ouvi ele mentindo para você me magoou.

Brie pareceu gostar das palavras que ouvira.

— Você pode ler minha mente?

— Não, não posso ler as mentes humanas, só quem nasceu vampiro é capaz disso.

— Ah — parecia decepcionada, mas não demorou a mudar de assunto: — Por que me seguia na floresta?

Me veio uma sensação de que deveria respondê-la com honestidade. E eu o fiz:

— Eu te seguia todas as noites, desde o primeiro dia em que te vi, não faz muitas semanas. Você caminhava recitando as cenas do script para as árvores, e falava sozinha, desenhava e... Era aí que você parava, quando um monte de casas reaparecia alguns metros a frente, se inclinava — meu sorriso não é mais tão débil, rever essa cena em câmera lenta nos confins de minha mente, me deixa feliz de verdade — e degustava do floco de neve que caia dentro de sua boca. Era tão, tão gracioso, tão humano...

Um sorriso iluminou os lábios trêmulos de Brie, essa deve ser a milésima vez que eu queria ter forças para ignorar o mundo e abraçá-la.

— Você sente falta de ser... Totalmente humano?

— As vezes nem mesmo lembro que sou humano, sei apenas que quero ser normal, que não quero depender dos dias nublados para sair, que não quero ter que forçar meus olhos a ficarem negros outra vez... Eles estão negros?

— Não, eles se tornaram vermelhos a muitos minutos, desde então eles oscilam: vermelho, como papoulas na primavera, e chocolate derretido.

A proximidade dessas duas palavras, primavera e chocolate, me é tão familiar que causam picos de animação a cada vez que as ouço ou pronuncio.

— Ah.

— Mal posso acreditar que tem um vampiro em minha frente, e, estranhamente, não sinto medo algum. Sinto um fascínio...

— Uma mistura estranha de adoração, inveja e medo — murmurei.

Seus dedos se arrastaram para o centro da palma de minha mão, desenhando caracóis invisíveis. Com um movimento rápido, Senhorita Mountain agarrou as luvas de couro delicadamente e as deslizaram até que eu não mais as tivesse vestindo.

Duas mãos quentes se ocuparam de tornar meu frio uma corrente de ar quente e raios invisíveis pareceram se ocupar de tornar as veias cheias de sangue gélido em icor fumegante. Quase me senti humano. Quase.

— É — ela entrelaçou seus dedos nos meus, meu frio parecia agradá-la. — Exatamente o que sinto.

Primavera & Chocolate (livro um)Onde histórias criam vida. Descubra agora