Os pneus robustos deixaram marcas fundas na neve virgem. Imaginando um problema inexistente, saltei atrás do trenó, mantendo uma distância considerável enquanto Brie guia a máquina barulhenta por entre árvores e pedras, com a destreza que eu não imaginava que ela tinha.
Hoje percebi algo estranho em minha doce Mountain. Ela não parece tão doce. Parece agridoce. Confusa. Como se estivesse com medo do que poderia lhe acontecer ao chegar aqui.
Inacreditavelmente, queria ser um Nascido, apenas para saber o que ela estava maquinando naquela cabecinha - ela seria tão lotada quanto a minha? Teria arquivos e mais arquivos de pura complexidade sobre pensamentos difusos e diminutos? - A julgar por hoje, suponho que sua mente é um turbilhão multipolar de emoções.
Senhorita Mountain parou seu trenó, ou seja lá o que for, de súbito e olhou para os lados como se esperasse por alguém. Parei sobre os galhos grossos de uma árvore alguns poucos metros para trás.
Seu rosto está vermelho, não sei se pelo frio ou o que... Mas ela elevou sua face para o alto e sentiu o vento levar seus cabelos como pequenas serpentes indefesas e medrosas, fazendo-os chicotear-lhe o pescoço levemente arqueado.
Seus lábios se entreabriram e ela pulou de seu veículo.
Parecia levemente "danificada", irritada, submersa em bilhões e bilhões de perguntas sem respostas.
- Como eu fui idiota... - arfou, baixando os olhos. - Curiosa? É. Com o que? Você... Que idiota! - ela está se mutilando mentalmente pela forma como agiu. Isso é inacreditavelmente... Poético.
Seu peito inflou, tanto que não me impressionaria se estourasse. Na verdade, sim, me impressionaria. Bastante.
- Por que você tem que ser assim, Senhorita Mountain? Não vê quão idiota fora? - sussurrava. Senti saudades desses impasses solitários. Sorri. - O que te ensinaram? - ela afundou o rosto entre as mãos, e sua voz se tornou abafada. - Que o mundo gosta de pessoas normais. Aquilo não foi nada normal.
Não foi normal para a Brie, mas seria normal para qualquer outra pessoa curiosa.
- Bem, não há mais o que ser feito. Vamos embora. Talvez o Ace apareça uma outra vez... Talvez.
Porque ela se preocupa tanto com se vou aparecer ou não? Me sinto perdido nesse turbilhão multipolar.
Senhorita Mountain voltou-se para o quadriciclo e o olhou por meio segundo. Mas, antes que ela pudesse montar, o uivo desnorteado de um lobo tomou sua mente e a minha.
Procurei, incessantemente, o dono do uivo. Não sabia que lobos vagavam por esse lado da floresta. Não tão perto dos humanos. Não tão perto da... Ó não... Brie!
O grande lobo cinza descia um pequeno sulco, seus dentes afiados se projetaram para fora da boca, os pelos eriçados, o focinho se remexendo, sentindo o cheiro da Brie.
Mountain se manteve parada, gélida, com seus olhos, caramelizados pela parca luz do dia, fixos na figura que se encaminha para ela à passos tensos e lentos, porém decididos.
Quando o lobo se deixou ser visto, estava tão próximo dela que senti seus cheiros se confundirem no ar petrificado. Ouvi a garota emitir um "Oh" salpicado de desespero.
A bruma pálida criando uma pequena tempestade frente ao rosto da Brie me impossibilita de ler sua expressão. Mas seus ombros, levemente flexionados de tensão, acusam seu medo, e seus olhos cintilando entre o trenó e o grande animal parecem transmitir fios de adoração.
A fera circunda o pequeno espaço, sem tirar os grandes olhos verdes da Senhorita Mountain. Ela, por sua vez, se manteve paralisada. Suas pernas, vez ou outra, trocam de peso disfarçadamente. Brie manteve as mãos coladas ao corpo, procurando respirar o mais sereno possível.
O lobo emitiu um rosnado de aprovação e lambeu os finos lábios coberto de pelos.
Lentamente, subi um pouco mais alto na árvore, o que fez as orelhas do bicho se voltarem para mim, mas sem tirar a atenção da Brie.
O que faço?
O animal diminuiu o espaço entre si mesmo e a garota petrificada. Sua língua se postava para fora da grande bocarra cheia de dentes afiados a cada meio segundo, sentindo o cheiro doce de carne nova.
A cena se desenrolava em câmera lenta.
Quando o lobo cinzento resolveu, enfim, que estava faminto de mais para brincar, saltou decididamente. Garras e dentes prontos para dilacerar a pele macia.
Pulei sobre o animal, agarrando seu pescoço. Seu cheiro almíscarado adentrou minhas narinas e me fez contorcer-me. Senti minhas costas tombarem no chão frio quando rolamos até bater numa árvore.
O lobo reclamou e mordeu-me no ombro. Senti a pele renascer em milésimos, mas o animal não se importava. Mordeu meu braço e se agraciou com meu uivo de dor. Agarrei-o pelas orelhas e o lancei contra outra árvore. Seu corpo deu uma guinada ao tentar se erguer. Entretanto, o bicho não queria sair de barriga vazia.
Saltou, meio trepido, abocanhando meu tênis e chacoalhando-o de maneira possessiva. Não queria machucá-lo, mas estava cego pela raiva.
Ergui-me com um pulo veloz, agarrei o lobo pelo estômago e abocanhei seu pescoço. Ele chiou e tombou.
Está morto.
Morto.
Morto.
Morto.
Passei uma mão trêmula por sua pelagem cinzenta, o cheiro pulgente roubou o ar a minha volta.
Desajeitadamente, me pus de joelhos, meio torto, em frente à sua cabeça. O instinto o matou. O meu e o dele. O que estou falando? Eu o matei! Há quanto tempo venho tentando não matar nada e nem ninguém? Um século. Um século e meio. E toda a minha dor ao fugir do meu "dever" agora parece moldada na forma do lobo à minha frente.
Me pus de pé.
A respiração pesada atrás de mim fez-me perceber a besteira que fiz.
Girei nos calcanhares, recompondo-me.
Os olhos de uma Brie boquiaberta consumiam a cena como se esta fosse sua primeira tentativa de assistir um filme de terror. Pavor e torpor inundaram seu corpo, fazendo-a tremer. Levemente, seus dedos se moveram e ela fechou os olhos para não ver mais aquela sangria.
Sumi, veloz como um foguete, sentindo a neve farfalhar sob meus pés e o pequeno coração da Senhorita Mountain desfazer-se em pó.
Esse não era o plano; acabei de arruinar a vida de um lobo e a mente da pobre humana.
Quantas vezes mais terei de descobrir que não sou mais nada se não um monstro?
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Primavera & Chocolate (livro um)
FantasyTudo o que Ace realmente quer é ser, novamente, mais um mortal. Entretanto, sendo impossível remover a imortalidade de seu corpo, ele vive na floresta, escondido dos humanos, observando, imitando e invejando-os, mas nunca sendo exatamente um deles...