Capítulo 6

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Na tarde passada, quando a neve estava quase atingindo meus joelhos, eu preferi continuar na estufa, estudando as plantas em meu cantarolar, que sempre me parece baixo de mais, sentindo o calor superficial e terno das lâmpadas fluorescentes e do velho aquecedor movido à gasolina.

Mas hoje, incrivelmente hoje, quando a neve não está salpicando as janelas e eu não preciso de seis casacos para me "misturar ao pessoal", resolvi sair, mesmo que ao mais tardar.

Quando os ponteiros atingiram quatro e meia da tarde, senti-me livre para andar um pouco mais e admirar as pessoas se movendo e interagindo entre si, com a promessa de que voltaria antes do jantar.

Todos sempre parecem tão felizes, como se seus problemas estivessem tão longe quanto o próximo inverno. Simplesmente admiro isso. E sinto aquilo, aquela pontada de decepção pelo que me tornaram, aquela agulhada de inveja e tristeza..

Nicholas um dia me olhou com seus olhos da cor das sementes de romã, e disse: É preciso aceitar o que você é, pois máquinas do tempo só existem em desenhos animados e tristezas não se podem ser sorvidas e alimentadas para sempre; está na hora de parar de lamentar e começar a viver!

Parar de lamentar.

Começar a viver.

Viver.

Viver.

Viver.

Isso está no topo da lista de afazeres importantes.

Atravessei o lago, não com um pulo altíssimo como fazia antes, mas sim de vagar, rodeando a forma circular e translúcida, coberta por uma grossa camada de gelo, chutando cascalhos e observando os poucos animais que resistem ao intenso inverno de International Falls, escondidos em velhos e mortos troncos do que um dia chegou a ser pinheiros.

Sentei-me um pouco em um dos bancos do estacionamento do colégio, imaginando alunos em suas salas de aula, aborrecidos, aprendendo bem menos da metade das coisas que eu talvez saiba. Assistindo à seus professores reclamarem da nota baixa e fazendo todos aplaudirem a nota mais alta da turma, daquele garotinho encabulado que sempre tira boas notas.

Os tempos eram outros quando eu ainda escolhia os livros para sair de meu quarto no internato e subir as escadas até a sala de aula. Uma professora carrancuda porém jovem, elevava sempre uma caneta e indicava a pergunta rabiscada com giz amarelo na lousa.

Me sentava sempre no meio e no canto, escondido atrás de páginas cheias de pequeninas letras.

- Ace DeVerot, qual a resposta? - ela sempre me olhava com aqueles olhos azuis possessivos, que eu sempre associava aos olhos de um certo psicopata em um dos livros que lia.

Eu olhava para toda a turma e todos os olhos estavam em mim. Aqueles olhos claros e inquietos esperando pela resposta do pobre nerd.

- Trinta e seis sobre dois - eu disse por fim, após analisar toda a pergunta.

- Ace, você... você errou! - ela parecia decepcionada, todos pareciam decepcionados. Eu sabia a verdadeira resposta, apenas menti para que todos me deixassem em paz.

Para mim nunca foi um problema ser o único à não receber a visita dos pais nos natais e aniversários. Meu pai nunca estava em casa, e era duro de mais para uma vista. Mamãe sempre estava presa àquele quarto, presa aquela cama, presa aquela doença, definhando.

Passos ao fundo me fizeram desfocar-me de minha vaga e nada doce lembrança.

Ergui-me e corri antes que pudessem me ver. Quem quer que fosse talvez não ache minha aparência apática convidativa.

Flocos de neve começaram a cair, leves e lentos como penas ao ar, dando início à noite.

O frio sussurrando em meus ouvidos, tentava me dizer que eu talvez não seja forte o suficiente para suportá-lo para sempre.

E tudo era um emaranhado brando, menos ela. Ela que apareceu como se do nada. Ela que roubou um ar que jazia em meus velhos pulgões inutilizáveis.

A pele com uma salpicada de caramelo, clara e ainda com cor, como chocolate com muitíssimo leite. Os ombros tensos, ligeiramente curvados para frente, as roupas escuras destacando-a no meio de toda aquela neve, os cabelos castanhos da cor de café, um tanto quanto ondulados, escorregando para fora de seu capuz. As mãos nos bolsos do casaco negro, olheiras cinzentas calmamente circulando seus olhos, como se ela tivesse apenas lido de mais. Os lábios levemente cheios, pigmentados de rosa, murmurando seus pensamentos, cuidadosamente, falando com o ar, as árvores e sua falta de folhas.

Olhos castanhos brilhando como se estivesse sendo atacados por holofotes, olhando para o vazio branco além das árvores, o vento trazendo seu cheiro doce de primavera para mim, aprisionando-me à ela... sem me deixar mover um só músculo.

A senti atarraxar os parafusos das minhas janelas e bagunçar meus arquivos mentais de forma furtiva. E eu não tive escolha. Ela não perguntou se eu a deixaria sentar-se sobre minhas poltronas, tampouco fez reverências ou acenos daquele modo cortês. Invadiu-me, e só. Permaneceu ali, e só. Andou, sussurrou alguma coisa que, naquele momento, me foi despercebido, e só.

Para alguns, talvez, ela não pareça tão diferente de todas as outras garotas humanas que você vê vagando pela noite, rindo pelas ruas de International Falls. Mas algo nela, fora e dentro dela, a torna mais humana do que qualquer outro e, ainda assim, a mantém como um personagem de um livro de fantasia ambulante.

E eu estou aqui, sedento por apenas pensar em ter um pouco daquela humanidade. Sedento para ter um pouco daquela menina estranha, calma e pensativa que vagueia entre os flocos de neve, como se eles fossem parte dela. Observando-a mover-se lenta, retirando os cabelos de frente dos olhos. Oh, como ela faz isso? Está enlouquecendo-me descaradamente, sem sequer perceber minha imutável presença.

Primavera & Chocolate (livro um)Onde histórias criam vida. Descubra agora