– Ace? – sua voz era um misto de glória e tristeza, ecoando em sussurros levemente distintos. – Por favor, Ace, acorde. Você não pode dormir, muito menos agora...
Abri os olhos com agonia.
Tudo a minha volta estava intacto. Sombras nas paredes. Luz azulada no teto. Torpor. Livros. Memórias. Nada de silhuetas em espelhos. Nada de espelhos.
Balancei a cabeça para todas as direções. Eu não poderia estar dormindo. Desde quando um vampiro dorme assim? Mas sua voz estava aqui, em minha mente, sussurrando meu nome incontáveis vezes. Como?
Olhei pela janela. A neve se acumula sobre os galhos, transformando as árvores tempos antes tão verdes em pequenas montanhas geladas.
Percebi a bobagem que estou fazendo e me apressei.
Tomei o banho mais rápido que pude, sem dar tempo para a água limpar qualquer coisa como deveria.
– Vai sair cedo hoje?
– Está nevando, não há nenhuma possibilidade de sol...
– Então você vai aproveitar para dar uma saídinha!? – Nick deixou sua leitura de lado por um momento, apenas para me olhar nos olhos. – Pode ir Boneco de Neve, mas não volte tarde de mais, e não deixe ninguém ver seus olhos assim.
Corri para fora, para o ar livre, para a vida que talvez fosse mais selvagem se metade das espécies não estivessem hibernando.
As casas começaram a surgir, uma por uma, como pequenas montanhas avermelhadas coberta por uma camada generosa de chantilly. Junto estava o cheiro distinto de flores e um misto de frutas e madeira fresca, que Mountain exala. Um cheiro solar, o cheiro da primavera. Tornei-me o falso humano, deixando de lado o vermelho em meus olhos.
Me aproximei um pouco mais, as mãos nos bolsos e a neve cobrindo meus tênis quase que por completo.
– Olá? Ace? – era a voz do pequeno Gustav, entrelaçada à um tremular constante.
Olho para trás.
O pequeno garoto está sentado sob um pinheiro alto, abraçado a Tesse, que, por sua vez, se mantém imóvel, arfando sonoramente.
– Gustav? O que está fazendo aqui? – pergunto, abaixando-me à seus pés.
– É a Tesse, ela não está nada bem – ele afogou os dedos no pelo do animal e aproximou seu ouvido da garganta da mesma, ouvindo o sibilar de suas tentativas de sorver o ar.
– O que aconteceu?
– Eu não sei – fungou. O ar fazendo nuvens pálidas em frente a seus lábios azuis. – Ontem ela estava tão bem, pulando, correndo atrás daquele esquilo feioso. Mas, hoje, ela acordou assim. Está triste.
– Onde estão seus pais? – toquei o focinho de Tesse com a ponta dos dedos, sentindo seu palpitar falho.
Logo afastei meu toque frio do pequeno animal amolecido sobre as pernas de seu dono.
– Papai está no hotel, cuidando dos negócios. Mamãe não voltou desde ontem. Brie ainda está na escola, ela pediu para eu esperar em casa, ela não sabe da Tesse - Gustav fungou mais uma vez, apalpando o peito da cachorrinha e tremendo ao notar quão fraca ela está.
Suspirei sonoramente.
Não sou um "Nascido" para ser capaz de ler os pensamentos de todos os seres vivos, mas ainda sou um vampiro, emoções e sentimentos deveriam ser fáceis para ao menos sentir, mas tudo o que Tesse transmite é dor.
– Ela comeu alguma coisa que não deveria?
– Cookies, tudo o que ela comeu foram os cookies que Brie fez - o garoto lançou um olhar fuzilante para sua casa, muitos metros a frente, como se o culpado pela dor de Tesse estivesse lá dentro, espreitando pelas vidraças.
– Biscoitos? De chocolate?
– É, de que mais sériam? – respondeu-me com rispidez, enxugando a lágrima que avançava enlouquecida. – Ela vai ficar bem, não vai? Chocolate não faz mal, faz? – seus olhos imploravam por uma resposta. E eu simplesmente não posso dá-la.
Olho para as casas, em especial para a casa do Gustav. Não há ninguém lá, ninguém que possa me acusar de monstro caso meus olhos mudem subitamente de cor.
– Vem. Vamos levar vocês para casa.
Com extremo cuidado, ergui a cachorrinha em meus braços, por pouco roçando meus braços nas mãos nuas de Gustav. O garoto se ergueu, puxando a manga de meu sweater como um apoio, e, ligeiramente calçou as luvas.
O animal se remexeu em meus braços, trêmulo, tanto pela dor, quanto por meu frio.
– Tudo vai ficar bem – sussurrei, retendo o barulho que minhas palavras causaram. O garoto agarrou-se à barra de meu sweater, mas uma vez, e manteve suas mãos ali.
A cada passo que aproximavamo-nos da casa, meu coração exclama impropérios, implorando para alguém lhe dê vida novamente. Deveria ser proibido demônios terem coração, mesmo que estes não pulsem, eles ainda estão aqui dentro de nós, mortos, para nos acusar, para que soframos um pouco mais.
Estou assim há tanto tempo que, às vezes, esqueço-me que já fora humano um dia.
– Gustav? – uma voz rouca se juntou aos ruídos ocos de nossos passos na neve. – Gustav, onde você está? – Gustav não respondeu, nem mesmo se alarmou. Percebi que ainda estamos longe da casa para que ele pudesse ouvir qualquer coisa vindo de lá. Só eu ouço. Só eu posso ouvir.
O frio fustiga os sentimentos inebriados de Gustav. Sua tristeza me perturba. A voz que ainda soa em minha mente, soa como tapas. O silêncio de International Falls estranhamente se tornou barulhento aos meus ouvidos sensíveis.
– Gustav? – a voz me guia enquanto Tesse emite chiados ao respirar. – Gustav, onde está você?
A voz se tornou mais alta e mais sufocante.
– Tesse... – a voz a chamou e a cadela, em meus braços, balançou o rabo felpudo de modo plausível.
– Brie? – Gustav sussurrou, para logo então gritar: – Brie, me ajude!
A porta dos fundos se abriu um pouco mais.
Seus olhos brilhantes se encheram de tristeza ao ver o pequeno desesperado aproximando-se aos pulos. Ela carregava um pote vazio, mas o deixou cair. Seu cheiro aqueceu o ar... Me roubaria a ar se eu respirasse.
– O que... O que aconteceu, Guss?
– A Tesse, Brie, ela não está bem... O Ace...
– Ace? – seus olhos lamberam a neve, então esbarraram alarmados ao me ver parado ali, segurando o pequeno animal.
E eu não consigo me mover, não com seu cheiro de primavera me inebriando, não com ela... Não com a senhorita Mountain me olhando desse jeito.
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Primavera & Chocolate (livro um)
Viễn tưởngTudo o que Ace realmente quer é ser, novamente, mais um mortal. Entretanto, sendo impossível remover a imortalidade de seu corpo, ele vive na floresta, escondido dos humanos, observando, imitando e invejando-os, mas nunca sendo exatamente um deles...