Capítulo 17

1.6K 282 173
                                    

— Acho que você não deve mais encontrar humanos, Ace. Você quase não aguentou.

Formulei uma desculpa esfarrapada, mas Nicholas me conhece há tempo suficiente para saber que eu iria tentar negar e inventar algo para continuar fazendo contato com os humanos. Com a Senhorita Mountain — ou Brie. Com o Gustav. E eu quase os matei há menos de vinte e quatro horas atrás.

Eu quase a matei...

Essa frase cria curvas em minha mente, como numa montanha russa. Levando e trazendo-me da realidade.

— Eu quase a matei, Nick... — a cena parece criar vida outra vez, na bruma branca depois do umbral. — Eu quase a matei... — deixei aquela bola amarga se dissolver em lágrimas frias e salgadas. — Quase a matei. Quase o matei. Quase matei todos eles...

Nicholas me puxou para seus braços frios, cobertos por várias camadas de tecido.

— Mas você não o fez. Você não os matou. Eles estão bem... Muito bem — sua voz soou como cem milhões de murmúrios atrás de portas finas.

— Por que eu fiz aquilo? Por que eu queria tanto seu sangue? — choramingei de encontro à seu tórax.

— Você não bebe diretamente de um humano há... Muitos anos, décadas...

— Só bebi de um humano, uma vez — sussurro entre um soluçar e outro. — Tinha gosto de vida: enjoativo, doce, com nuances de metal. Algumas vezes parecia um néctar dos deuses. Outras, uma mistura agridoce. Quente e... E eu queria me matar depois de ter feito aquilo. Foi horrível como aquele homem gritava.

Apertei os olhos como se os gritos ecoassem, agora, por toda a sala.

— Como aconteceu? E depois? — Nicholas me soltou para que eu pudesse enxugar as lágrimas diminutas.

— Olhe... Veja em minha mente. Você pode ver — parecia ríspido de mais para o Ace que eu conheço, para o Ace que eu sou. Engoli em seco, sentindo o gosto salgado das minhas próprias lágrimas, então comecei: — Primeiro, havia um homem andando sozinho na rua quando eu parei e senti seu cheiro. Estava correndo desde que acordara assim. Eu gritei por ajuda. Minhas roupas estavam em farrapos, ainda sentia o gosto frio e insosso do meu próprio sangue em meus lábios. O homem se aproximou, estava com medo, eu senti. Ele perguntou meu nome e se aproximou um pouco mais. Seu cheiro, o cheiro do seu sangue era pavoroso, delicioso, cálido e doce — parei para ver Nicholas assenti. — Não consegui segurar a sede que me consumia de dentro para fora e o ataquei.

“Depois, quando o homem já não tinha mais vida, dois brutamontes, atraídos pelos gritos, chegaram. Eu joguei um contra a parede, mas o outro me acertou com um... Acho que aquilo era um cano. Um cabo de vassoura...? Não sei. Sei que, não importava quantas vezes ele batesse em mim, não doía. E eu parei. Fiquei olhando ele berrar e xingar e bater, tudo ao mesmo tempo. Duas. Três. Dezenas de vezes. Manchas roxas surgiam em minha pele, mas desapareciam em meio milésimo de segundo. Eu mesmo queria me bater para parar com aquilo.

“O homem percebeu que nada do que fizesse surtia efeito sobre mim. Então ele entoou um cântico estranho. Nada. Ergueu a cruz de seu cordão de ouro. Nada. Ele gritou por Carl e um garoto mais novo que eu correu até ele. Todo aquele sangue embutido naqueles corpos quentes me deixou anestesiado. Quase não consegui me controlar. Não me controlei... Mas o garoto jogou uma coisa em mim, uma corrente, e aquilo doeu. Eu sorri com a dor. Ele chorou quando eu sorri. Foi bom sentir dor e sentir-me humano outra vez.

Nick emitiu um zumbido de satisfação, mas parecia bem atento a minha história, então continuei, umedecendo os lábios para logo senti-los secos de novo:

— Mas a dor era em uma proporção exagerada, como se tivesse sentindo a dor daquela primeira pancada que o outro homem havia me dado — falei. — Então eu corri. Como um flash e fiquei vagando, bebendo sangue de lebres e veados, ou qualquer outro pobre animal, ficando mais fraco e mais longe da civilização a cada dia... Até encontrar você.

Nicholas me lançou um olhar débil mas carregado de animação, como se essa fosse a história mais triste que ele houvesse ouvido em toda a sua vida, mas que mesmo assim fosse a melhor.

— Talvez seja por essa sua coragem estranha que eu venho te admirando tanto — disse Nicholas, sem tirar seus olhos de mim. — Você é como uma supergigante, que cresce e se torna uma supernova, mas que, mesmo enorme, não procura ofuscar nenhuma outra estrela. Apenas morre, milhares e milhares de anos depois, para se tornar uma pulsar: uma imensa bola giratória de materia, enviando suas ondas de luz, de paz, de calma, para provar que você ainda existe ali, de outra forma, mas existe, e existirá para sempre — Nick fazia gestos com as mãos, como se pudesse imitar uma explosão de luz no céu.

Sorri com suas palavras excêntricas e enfim meus sentidos pararam de gritar por sangue.

— E então Boneco de Neve, não vai voar para fora de casa?

Olhei para fora, para a neve e para o final do meu horizonte quadriculado.

— Não. Hoje não. Talvez nem mesmo amanhã.

— E o que você vai fazer todo esse tempo aqui? — lançou-me uma piscadela.

Voltei a olhar para Nick. Seus olhos transmitem paz, agonia e contentamento.

— Que tal... ler? — mordisquei meu próprio lábio. — Ou molhar as plantas? Ou aprender a fazer uma de suas comidas?

— Vai ser ótimo! — A gargalhada de Nicholas foi tão alta que me vi obrigado a sorrir também, e solver toda aquela tristeza e todas aquelas lembranças de primavera e da linda humana em lágrimas secretas que serão guardadas para sempre, bem no fundo da memória.

Primavera & Chocolate (livro um)Onde histórias criam vida. Descubra agora