– Olha, Valdinho. Tu estás abatido e preocupado. É natural que no início sintas isso, mas imagina as coisas boas que podes fazer. Bem que Irla te disse que eras puro e a tua sensibilidade te fazia como elas. Quanto a decidir quem vive e quem morre, basta ser um idiota com uma arma na mão como tantos assaltantes que tem por aí. Tu não tiras vidas; repões, quando necessário.
Valdo ouviu em silêncio e continuou calado por alguns segundos, pensando nisso.
– Por que temos que ser desse jeito, Igor? – perguntou, agoniado. – Eu acho que metade do mundo tem inveja da gente e a outra metade ódio fundamentado no medo. Eu tinha inveja de vocês, das facilidades que isso trazia, mas nunca me ocorreu pensar mal de vocês, antes pelo contrário, sem falar que nunca imaginei que tivesse outro lado, mas a verdade é que todas as moedas têm dois lados. Eu sempre associei esse dom com a vossa bondade e amizade, como era na ilha. Em Avalon, éramos venerados e amados pelo povo; aqui, somos até piores do que monstros.
– Sempre foi assim desde que o império romano e a igreja nos descobriram – disse Igor, professoral. – O preconceito é uma coisa muito velha, muito mais do que tu pensas e não ocorre só com gays ou negros, por exemplo. Ocorre com todos os que são diferentes e começa cedo, começa na escola ou mesmo em casa. Mas isso tudo, tu já sabes muito bem, não é?
– Só que nunca imaginei que isso viesse de alguém que também era vítima de preconceito, Igor – desabafou Valdo. – E isso doeu muito, cara.
– Eu imagino – disse Igor, pensativo. – Eu morria de medo de contar para a Eduarda. O que te aconteceu?
– Nós fomos tomar umas cervejas e conversar – explicou Valdo, falando devagar como que procurando reviver aquilo. – Eu contei tudo para ele, inclusive sobre a Nealie, enfim, tudo. No início, ele ficou muito zangado porque achava que agi sem pensar nele e tinha toda a razão. Eu me senti um lixo quando disse isso, mas ele estava certo, só que depois ele foi preconceituoso e associou o meu erro aos nossos poderes. Então, quando salvei a garota, ele olhou para mim de uma forma que jamais vou esquecer, como se eu fosse a maior aberração do mundo, como se ajudar alguém fosse errado... cara, eu fiquei acabado com isso.
– Olha, não te precipites – disse Igor. – Deixa ele digerir isso e pensar um pouco. Sabes com é, com tantos músculos o cérebro leva mais tempo a ser irrigado.
– Desculpa não rir da piada – disse Valdo. – Até que é boa, mas não tô no clima. O pior de tudo é que eu gosto dele, Igor, eu gosto dele, que droga!
Igor viu que o amigo vertia lágrimas e estendeu a mão. No meio do caminho apareceu um lenço, que lhe ofereceu.
– Vá lá, meu velho – insistiu o amigo. – Acalma-te que todos precisam de um tempo para se adaptarem. Afinal tu quase tiveste um colapso quando te mostrei meus poderes.
– Eu só queria que ele fosse compreensivo, mesmo se não me quisesse mais por causa do meu erro, mas que fosse compreensivo porque também não é fácil para mim. Eu desejava muito que fôssemos viver em Céltia, juntos, mas nunca imaginei que ele fosse ser preconceituoso com isso e...
– Poderia alguém que cometeu tamanho erro pedir desculpas e esperar ser perdoado, Valdinho? – perguntou uma voz atrás deles.
Ambos viraram-se e viram Teodoro a poucos metros, sem jeito.
– Como tu sabia que eu estava aqui? – quis saber, virando-se para trás. – É feio ficar ouvindo os outros.
– Eu sei que é feio, amor, mas sou imperfeito mesmo e acabo fazendo muitas besteiras. Quanto a você estar aqui, foi um pequeno palpite, já que a gente se encontrou neste lugar pela primeira vez. – Aproximou-se devagar e pôs a mão no ombro do Valdo, que estremeceu. – Me perdoa. Acho que fiquei meio chateado e isso mais as novidades não me deixaram pensar direito. Eu também gosto de você, então que tal recomeçarmos nosso papo de ontem para dar tempo ao meu cérebro de irrigar e assimilar?
Igor levantou-se, sorrindo. Estendeu a mão para Teodoro e disse a ambos:
– Vocês precisam conversar bastante e decidir a vossa vida. O que aconteceu é inevitável e irreversível porque voltar no tempo é uma das coisas mais perigosas que existem, então têm que levar isso em conta. Valdinho: nunca te esqueças que graças a essa dádiva, salvaste da extinção dois povos e talvez o planeta Terra, sem falar na minha vida e da Carol. Eu vou encontrar Eduarda, Ailin e Morgana no brique. Liguem para nós e podemos almoçar todos juntos.
Sem esperar resposta, virou as costas e pegou no telefone.
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Na churrascaria, enquanto tomavam café, Valdo disse:
– Eu e Teo decidimos viver em Céltia. Não sabemos se vai dar certo, mas ambos queremos tentar.
– É isso aí – afirmou Eduarda, alegre. – Burrice é não tentar ser feliz.
– Você disse tudo – comentou Teodoro, sorridente.
– Bem, em cinco dias vamos retornar a Avalon para ver os preparativos da população para o êxodo – comentou Igor. – E vamos pegar os magos de Avalon para conhecerem o Mundo de Cristal e serem apresentados ao grande conselho. Vamos providenciar equipes de magos instrutores para ensinarem aquela gente.
– Eu e Valdinho também podemos ajudar o povo com nossos conhecimentos – afirmou Teodoro. – Ele é engenheiro elétrico e eu mecânico, dois ramos da engenharia muito uteis para uma sociedade emergente.
– Sem dúvida – concordou Valdo.
– Igor, Valdinho disse que pelas leis de vocês, o Mundo de Cristal é fechado para os não magos, mas eu gostaria muito de conhecer, seria possível conseguir uma autorização com o chefe de vocês.
– Falarei com ele em pessoa – disse Igor, piscando o olho para os amigos e pisando no pé da esposa. – Se ele não me atender, dou-lhe uns cascudos.
– Nossa, imagina! – exclamou logo Teodoro, fazendo um gesto negativo com as mãos e preocupado. – Não faça isso que não desejo que arrume problemas por minha causa.
– Não te preocupes. – Igor riu. – Haverá exceções sobre a presença de mundanos, especialmente companheiros ou companheiras de magos e feiticeiras.
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O Mago e a Sacerdotisa de Avalon
FantasyA aventura não acabou... (sinopse temporária) Pouco menos de dois anos depois do seu maior desafio, Igor vasculha a biblioteca principal do Mundo de Cristal e encontra um recinto secreto com a pista que pode elucidar o caso do sumiço repentino de...