O sangue salpica o chão até se forma uma poça grande. O meu grito sai abafado pela dor.
Outro tiro. Desta vez mais ao lado.
O Afonso não olha para a arma, os seus olhos cegos de raiva encaram-me, sem piscar.
Mais um tiro.
Afasto-me assim que se dá o embate da bala.
Oiço gritos de todos os lados mas o meu corpo permanece inerte. Caio de joelhos, a visão embaçada pelas lágrimas, mais sangue no chão. Gemidos de dor.
Uma luz forte invade o local. Vários homens armados entrem tomando o poder aos homens do Afonso, que agora obedecem cegamente às ordens de um outro homem. A voz não me é estranha, tento reconhece-la mas o meu cérebro não consegue raciocinar, parece um cd com apenas uma faixa: o som de tiros, que soa em modo replay.
- O que é que faz aqui? – Pergunta o Afonso.
- Impedir-te que cometas um erro.
- Que erro? Estou apenas a mostrar que ninguém se mete com o que é meu, tal como o pai me ensinou. Não devemos abdicar daquilo que nos faz feliz, nem que para isso tenhamos de passar por cima dos outros. Estou apenas a seguir os seus ensinamentos.
- Mas também te ensinei os valores da nossa família – Afirma rudemente – E as famílias devem-se apoiar e não matar-se uns aos outros.
- Não admito traições.
- Olha o que tu fizeste á tua família! – Ele avança em direção ao Lucas e ao Simão – Olha o estado em que deixaste os teus irmãos.
- Esse bastardo deixou de ser meu irmão no momento em que me traiu.
- E o Lucas? O que é que te fez? Nada. – Ele agacha-se ao lado do corpo do Lucas e acaricia-o – Ele não te roubou nada, se fizermos bem as contas tu é que lhe roubaste a namorada. Não sei o que vocês viram naquela mulher. – Ele suspira – Os meus três filhos apaixonaram-se pela filha do meu maior inimigo, que clichê.
- Três filhos?! Como assim? – Pergunta o Simão, quase sem forças.
- A mãe do Lucas foi o meu grande amor, conheci-a em Moçambique numas férias. Ela também estava de férias em casa de uma amiga, ela era linda. – Ele cala-se por uns momentos e suspira – Era um anjo. Aquelas semanas foram as melhores da minha vida, sempre que podia escapava do meu quarto e corria pela floresta até chegar á cascata onde ficávamos juntos a noite inteira, mas ela teve de regressar e nunca mais a encontrei. Não havia um único dia em que não pensasse na sua beleza. Uns anos mais tarde reencontramo-nos em Nova Iorque, descobri que estava casada e tinha um filho de 6 anos...E depois dessa noite voltou a desaparecer da minha vida. E foi então que comecei a investigar a vida dela e descobri que o Lucas era meu filho. Nunca me aproximei porque ela me pediu quando a confrontei, nunca soube as suas razões para este afastamento e nunca chegarei a saber, ela partiu antes de me poder explicar. – Ele continua a acariciar o filho caído no chão – Mas sempre o protegi, protegi-o de tudo mesmo quando a maldita mulher pela qual lutam o levou para o perigo, o obrigou a matar para a proteger. Nunca foi caçado por aqueles homens porque eu o impedi.
Então levanta-se a aproxima-se do Afonso.
- Você traiu a minha mãe. – Vocifera furioso. – Por isso é que ela se foi embora, por isso é que ela me abandonou. Por sua causa.
- Casamos por obrigação. Nunca a amei.
- Por sua causa fiquei sem a minha mãe, por sua causa ela abandonou-me. Agora sentirá na pele o que senti quando a perdi.
Ele aponta a arma ao Lucas e dispara. Mais um disparo naquela direção. O Lucas já sofria ferido no chão, mas o Simão, apesar dos ferimentos causados pelas anteriores balas do Afonso, conseguiu alcançar o Lucas e protege-lo. A bala atingiu as suas costas, na direção do coração. E naquele momento o Simão deu o seu último suspiro.
A raiva cegou-o de tal forma que continuou a disparar na direção dos dois corpos deitados no chão, até que de repente faz-se silêncio. O corpo do Afonso cai ao chão inerte, morto. O pai dele está com o braço esticado, arma apontada, a mão no gatilho. Já o tinha apertado... já tinha matado o próprio filhos.
E então, mantendo uma postura rígida sai do armazém levando consigo os seus homens e os capangas sobreviventes do Afonso.
Após o beijo na minha barriga pensei que o Afonso dispararia sobre a mesma, mas a arma foi apontada para trás, o Lucas foi alvejado uma vez no tronco, o Simão foi alvejado 2 vezes. O seu olhar cruel enquanto atirava sobre os dois ficou bem gravado na minha mente assim como a posição do seu corpo morto, deitado no chão imundo de um armazém velho, morto pelo próprio pai.
Corro até ao Lucas, que está inconsciente no chão e sustenta o corpo morto do Simão. Não consigo chorar, não consigo reagir. Só consigo ouvir gritos, lá de longe. Os barulhos intensificam-se, várias pessoas se aglomeram no interior do armazém, correm de um lado para o outro, comunicam entre gritos. Sou afastada do aparato por duas mãos grossas e levada para o carro.
Acaricio a barriga enquanto o carro avança pela estrada. Entro num edifício grande e sento-me numa cadeira de plástico. Várias pessoas andam apressadas de um lado para o outro, uns de roupa normal, uns de branco, outros de verde,...
E choro pela primeira vez quando vejo o Lucas deitado numa cama. Regresso á realidade e percebo onde estou. Sento-me na poltrona ao seu lado e acaricio a sua mão magoada.
- Por favor sobrevive, temos os nossos bebés á nossa espera. Lembras-te do que combinamos? Que íamos juntos buscar a Emily e o Gonçalo? Lembras-te? E a Bianca está aqui ansiosa para te conhecer, não tem parado de me dar pontapés... - limpo as lágrimas desajeitadamente – Ela sente a tua falta, tal como eu. Por favor, sobrevive.
Todos os dias, durante uma semana inteira implorava-lhe que sobrevivesse. Perdi o contacto com o mundo. Saía do hospital para tomar banho e trocar de roupa e corria de novo para a beira dele, sempre sem largar a sua mão. O único dia que demorei mais foi no funeral do Simão. Os seus amigos perguntavam-se como é que aquilo tinha acontecido, como é que um irmão era capaz de matar o outro. Eram tantas suposições e hipóteses mas todas falhavam. Ninguém sabia do verdadeiro motivo daquela discussão toda, ou pelo menos de parte da discussão.
O Afonso também foi enterrado em solo português ao lado dos seus bisavôs maternos, de família apenas a sua filha e ex-mulher estiveram presentes, juntamente com alguns sócios do Afonso, que rejubilavam de felicidade por dentro. Vi também a Júlia, que acompanhava a cerimónia de um local escondido, provavelmente tinha sido proibida de estar presente.
E no meio de tanta desgraça uma boa notícia surge. Após tantos pedidos o Lucas decide obedecer e acorda. Primeiro a sua mão aperta a minha e depois os seus olhos começam a abrir lentamente e no fim aquele sorriso idiota que o caracteriza.
- Não te vais ver livre de mim assim tão facilmente. – Diz com dificuldade.
Beijo os seus lábios e todo o seu rosto, acariciando-o com cuidado.
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Segredos Perversos - A disputa (livro 3)
RomanceSejam bem-vindos a mais uma aventura destes quatro amigos!! O passado emerge e uma nova luta surge... Depois de 7 anos a viverem vidas separadas mas com um filho em comum, as vidas da Rafa e do Dinis voltam a unir-se após uma tragédia. Na casa ao l...