XIX

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Gabriel

Os seres humanos, perdem grande parte de suas fúteis vidas à procura de respostas vagas, para perguntas vagas. A existência de um inferno, ou céu, não muda o desenrolar da vida humana desde que o equilíbrio seja mantido. São criaturas covardes que buscam abrigo sob as asas de um só salvador, por medo de enfrentar o submundo sozinhas, mas o que as torna ignorantes é a ilusão de estarem à salvo sob teto santo. O inferno existe dentro de cada um deles, à nossa volta. Os monstros escondem-se nos seus próprios corpos fracos e medonhos. Fragilizados pela ideia do sofrimento, e da dor de ocupar o seu quadrado no reino infernal, buscam a paz no que chamam religião. Religião é algo que fixa os nossos pés no chão, e impulsiona a alma ao pior dos conflitos por uma vitória que não seria unicamente nossa, distinto de algo que da-lhes segurança para acreditar no perdão de um ser onipotente que o livrava do mal que vagueia no seu próprio lar. Ninguém estará à salvo na colisão dos mundos, na guerra, os fracos cairão. Os fortes permanecerão. Ambos sofrerão. Irmãos. Estamos vivendo juntos, indo juntos, caindo juntos. No fim, o fraco e o forte, tornam-se num só pó. Ou parte de algo maior que o possa destruir. A sua própria morte, ou devoção.  Tudo que é erguido, cai. Tudo que é vivo, morre. Tudo que é santo, peca. O meu pecado é a minha religião, o que me mantem firme. O meu pecado é minha devoção a algo que não é Deus ou um só deus. O meu pecado é idolatrar a beleza e o sangue quente que corre em suas veias. O meu pecado é a dor no meu peito, que me faz querer encarar tudo isso com o meu castigo. O meu pecado é protege-la acima de tudo, o meu pecado é ama-la. Tal fraqueza me torna tão semelhante aos humanos falhos, tal fraqueza, me mantém tão próximo da humana que tem em mãos, a minha alma de pouco brilho. O meu pecado final será dono da minha morte, e penitência. O seu fim, será o meu fim.

Fixei os meus pés na terra escura que abrange o repouso dos mortos. A chuva que caíra desde que deixei Íris na capela, colou os fios de cabelo castanhos ao meu rosto, e molhou as minhas roupas pesadas. Caminhei em passos tortos e esquivados até o mausoléu, enquanto chamava algumas vezes por Malakai.  O silêncio foi a resposta recebida, o que me deixou intrigado. Ergui a porta de porão, e saltei para dentro da caverna que havia visitado há uns dias. Não havia sinal se quer da sua presença nos aposentos escuros. Continuei com o meu objetivo,  indo para a porta dos fundos, que nada mais era que um arco de madeira velha que dava para uma parede de tijolos. Respirei fundo antes de tocar os tijolos, adentrando aos poucos com meu corpo na parede . O ambiente do outro lado era mais quente, e seco. Como se as chamas tivessem destruído o lugar recentemente, a terra era cinzenta e o céu, escuro. Marquei o caminho mais próximo para o templo, a localização de Miguel não era difícil, Lúcifer com certeza o manteria prisioneiro, visto que Miguel era o que ele tinha mais próximo de uma ameaça. Precisava controlar a ansiedade, não podia usar as asas para alcançar mais rápido o meu objetivo, seriam destruídas. Ignorei os chamados das almas locais, as criaturas imundas de múltiplas vozes e as tentações. O inferno era um bom lugar para pecadores. A dor e o sofrimento dos pagantes, misturava-se com a luxúria e a submissão de outros.

Ergui o capuz quando cheguei no templo principal. Desde que os guardas não me reconhecessem, conseguiria passar como um adorador normal que louvaria o senhor do inferno, ou assistiria a um castigo, acusação, ou audiência qualquer. Os meus olhos ardiam com o calor do local. Podia sentir a umidade da pele das minhas costas, testa, nuca e peito, pela transpiração.

— Filho de Deus, o que queres?

O guardião era um gordo velho de mais ou menos um metro e sessenta. Ao seu redor estavam postas cerca de quatro ou cinco mulheres, sendo que duas delas estavam sentadas na mesma poltrona que ele. Não se têm muito trabalho quando recepcionista do templo. Ninguém costuma visitar o inferno. Encolhi o sombrolho, sem entender como o velho me reconhecera. A sua aproximação deixou a visão para os seus olhos mais clara e foi quando notei a sombra prateada que tapava os seus olhos, ele era cego.

Crows { H.S }Onde histórias criam vida. Descubra agora